E aí Charlie começou a fazer um “hum-hum” ritmado.
— Que música é essa? — perguntou Daisy.
— O nome é “Yellow Bird” — respondeu Spider.
Charlie empurrou o chapéu para trás. Eles entraram no quarto de Rosie.
Ela estava sentada na cama, lendo uma revista, e parecia preocupada. Quando viu os três entrarem, pareceu ainda mais preocupada. Seus olhos pulavam de Spider para Charlie, e de volta para Spider.
— Vocês estão bem longe de casa, não?
Foi tudo o que ela disse.
— Todos nós — respondeu Charlie. — Bom, você já conhece o Spider. Essa é a Daisy. Ela é da polícia.
— Não sei se ainda sou — corrigiu Daisy. — Provavelmente me meti numa grande enrascada.
— Era você quem estava lá ontem à noite? A policial que fez a polícia da ilha ir até a casa? — perguntou Rosie. Depois de uma pausa, continuou: — Já teve notícias de Grahame Coats?
— Ele está na UTI, assim como a sua mãe.
— Bom, se ela acordar antes dele, espero que o mate — replicou Rosie. — Eles não falam nada sobre a condição da minha mãe. Só dizem que é muito grave e que vão falar comigo somente quando houver algo a dizer.
Olhou para Charlie com olhos tranqüilos e disse:
— Ela não é tão má quanto você acha que é, sabe. Não quando você passa um tempo com ela para conhecê-la melhor. A gente teve bastante tempo para conversar, trancadas no escuro. Ela é legal.
Assoou o nariz. Continuou:
— Eles acham que ela não vai sobreviver. Não me disseram isso diretamente, mas meio que disseram isso sem dizer, sei lá. Engraçado. Sempre achei que ela sobreviveria a qualquer coisa.
— Eu também. Sempre achei que, se houvesse uma guerra nuclear, ainda restariam as baratas e a sua mãe — concordou Charlie.
Daisy pisou no pé de Charlie, repreendendo-o, e perguntou:
— Já sabem o que houve com a sua mãe?
— Eu falei pra eles. Havia um animal naquela casa. Talvez fosse o Grahame Coats. Quer dizer, era ele, mas também era outra coisa. Ela conseguiu distrair a fera, e aí foi atacada...
Ela tinha explicado os acontecimentos para a polícia naquela manhã da melhor maneira que podia. Decidiu que não falaria sobre a mulher fantasma. Às vezes nossa mente cede à pressão da situação. Concluiu que era melhor que as pessoas não soubessem que isso acontecera com ela.
Então Rosie caiu no choro. Olhava para Spider como se acabasse de se lembrar de quem ele era.
— Eu ainda te odeio, sabia?
Spider não disse nada, mas uma expressão de dor surgiu em seu rosto. Aí ele não parecia mais um médico. Agora parecia alguém que pegou um jaleco branco detrás de uma porta e estava preocupado se alguém descobriria.
Ela falou num tom sonhador:
— Só que.. Só que, quando eu estava lá, no escuro, achei que você estivesse me ajudando. Que você ajudava a manter o animal longe de mim. O que aconteceu com o seu rosto? Está todo arranhado.
— Ah, um bicho me arranhou.
— Sabe, agora que eu estou vendo vocês dois juntos, acho que não se parecem nem um pouco.
— É que eu sou mais bonito — interrompeu Charlie, e o pé de Daisy pressionou os dedos do pé dele mais uma vez. Daisy disse, baixinho:
— Deus do céu! — Depois, um pouco mais alto: — Charlie? Tem uma coisa que eu quero falar com você lá fora. Agora.
Saíram para o corredor do hospital, deixando Spider no quarto.
— Que foi? — perguntou Charlie.
— Que foi o quê?
— O que você quer falar comigo?
— Nada.
— Então por que saímos do quarto? Você ouviu o que ela disse. Ela o odeia. A gente não devia ter deixado os dois juntos. Ela deve estar matando o Spider neste momento.
Daisy olhou para ele com a mesma expressão com a qual Jesus Cristo talvez teria olhado para alguém que tivesse acabado de explicar que não sabia se era alérgico a pão e peixe, então será que Ele não poderia fazer uma saladinha básica de frango? Era uma expressão de pena, e também de uma compaixão quase infinita.
Pôs o dedo em riste perto dos lábios e o puxou de volta para a porta. Ele olhou para dentro do quarto do hospital: não parecia que Rosie estivesse matando Spider. Muito pelo contrário, aliás.
— Ah... — disse Charlie.
Eles estavam se beijando. Dito dessa maneira, ninguém poderia culpar uma pessoa que observasse a cena se pensasse que era um beijo normal, com contato dos lábios, da pele, talvez um pouco de língua. Talvez nem todos perceberiam como Spider sorria, como seus olhos brilhavam. Quando o beijo acabou, nem todos notariam o modo como estava ali, de pé, como se fosse um homem que acabara de descobrir a arte de ficar em pé e que também descobrira como fazer isso melhor do que todas as outras pessoas.
Charlie voltou-se para o corredor e viu Daisy conversando com diversos médicos e o policial que tinham conhecido na noite anterior.
— Bom, a gente sempre desconfiou que ele fosse um mau elemento — dizia o policial a Daisy. — Porque, francamente, esse tipo de comportamento só pode vir de estrangeiros. As pessoas daqui nunca fariam essas coisas.
— Sim... claro.. — respondeu Daisy.
— Sou muito, muito grato a vocês — agradeceu o chefe da polícia, dando tapinhas amigáveis no ombro de Daisy de um jeito que a fez querer morrer. — Esta mocinha aqui salvou a vida daquela mulher — continuou o policial para Charlie, aproveitando para dar também um tapinha condescendente no ombro dele antes de sair com os médicos pelo corredor.
— E então? O que está acontecendo?
— Bom, Grahame Coats morreu — respondeu ela. — Quer dizer, mais ou menos. Também não há muita esperança para a mãe de Rosie.
— Entendo.
Pensou sobre o assunto. Quando terminou de pensar, chegou a uma decisão.
— Você me dá um segundinho para falar com o meu irmão? Acho que eu e ele precisamos conversar.
— Eu preciso voltar ao hotel, de qualquer maneira. Ver se chegou algum e-mail pra mim. Talvez precise fazer ligações e me desculpar eternamente ao telefone. Descobrir se ainda tenho uma carreira pela frente.
— Mas você é uma heroína, não?
— Não acho que sou paga para cometer atos de heroísmo — observou ela, um tanto desanimada. — Me encontre no hotel quando terminar.
Spider e Charlie caminharam pela rua principal de Williamstown, à luz do sol da manhã.
— Sabe, esse chapéu é bem legal — disse Spider.
— Você acha?
— Sim. Posso experimentar?
Charlie deu a Spider o panamá verde. Spider colocou o chapéu e olhou seu reflexo na vitrine de uma loja. Fez uma careta e deu o chapéu de volta a Charlie. E disse, desapontado:
— Bom., pelo menos fica legal em você.
Charlie colocou o chapéu de volta. Alguns chapéus só podem ser usados se você quer passar um ar de desenvoltura. Colocar o chapéu num determinado ângulo e andar com passos leves, como se estivesse prestes a sair dançando. São chapéus que exigem muito de quem os usa. E esse chapéu era um deles, e Charlie aceitava o desafio.
— A mãe de Rosie está morrendo — contou.
— É.
— Eu nunca, nunca gostei dela.
— Eu não a conhecia tão bem quanto você. Mas, com o tempo, tenho certeza de que eu também não gostaria dela nem um pouco.
— Precisamos salvar a vida dela, não?
Charlie disse isso sem entusiasmo, como se dissesse que precisa marcar consulta com o dentista.
— Não sei se podemos fazer esse tipo de coisa.
— O papai fez isso pela nossa mãe. Fez ela melhorar por um tempo.
— Mas isso foi ele. Não sei como a gente faria isso.
— O lugar no fim do mundo. O das cavernas.
— Começo do mundo, não fim. O que é que tem?
— Não podemos simplesmente ir pra lá? Sem aquela abobrinha toda de velas e ervas?
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