“Isso”, pensou, uma palavra de cada vez, “é a pior coisa que poderia acontecer.” Estava com uma ressaca que o Deus do Velho Testamento teria mandado como praga sobre os infiéis, e tinha certeza de que da próxima vez que visse Grahame Coats seria informado de que estava demitido.
Ficou pensando se soaria convincentemente doente pelo telefone, mas percebeu que o desafio seria parecer normal.
Não conseguia lembrar como havia chegado em casa na noite anterior.
Ele ligaria para o escritório assim que conseguisse lembrar o número. Pediria desculpas — uma gripe o pegou de jeito, o deixou de cama, não havia nada que pudesse fazer...
— Olha — disse alguém na cama, ao lado dele —, acho que tem uma garrafa de água aí do lado. Pode passar pra mim?
Fat Charlie quis explicar que não havia água do lado da cama e que a água mais a mão ficava na pia do banheiro, se limpasse antes a caneca da escova de dentes. Então se deu conta de que havia diversas garrafas de água sobre o criado-mudo. Ele esticou a mão, fechou os dedos (que pareciam pertencer a outra pessoa) em volta de uma delas e, fazendo uma força que em geral as pessoas reservam para se erguer quando faltam alguns centímetros para alcançar o topo de uma montanha íngreme, rolou na cama.
Era a vodca-com-laranja.
Além disso, estava nua. Ao menos as partes do corpo dela que ele podia ver estavam nuas.
Ela pegou a água e puxou o lençol para cobrir o peito.
— Brigada. Ele pediu pra avisar, quando você acordasse, que não precisa se preocupar em ligar pro trabalho e dizer a eles que está doente. Ele já resolveu tudo.
Mas Fat Charlie não se tranqüilizou. Seus temores e preocupações não foram embora. Também, na condição em que se encontrava, só havia espaço em sua cabeça para se preocupar com uma coisa de cada vez. Nesse momento, estava preocupado em saber se conseguiria chegar ao banheiro a tempo.
— Você precisa tomar mais líquido — sugeriu a moça. — Repor os eletrólitos.
Fat Charlie conseguiu chegar ao banheiro a tempo. Depois, vendo que já estava por ali, ficou embaixo do chuveiro até o banheiro parar de girar. Escovou os dentes sem vomitar.
Quando voltou ao quarto, a vodca-com-laranja não estava mais lá. Isso foi um alívio para Fat Charlie, que começava a rezar para que ela fosse uma ilusão induzida pelo álcool, como elefantes cor-de-rosa ou a idéia pavorosa de que ele tinha resolvido cantar num palco, na noite anterior.
Não conseguia achar seu robe, por isso pôs um moletom, de modo a estar minimamente vestido para ir até a cozinha, no fim do corredor.
Seu celular tocou. Ele procurou pelo paletó, que estava no chão ao lado da cama, até achá-lo, e o abriu. Grunhiu um alô do modo mais anônimo que podia, caso fosse alguém da Agência Grahame Coats querendo saber onde estava.
— Sou eu — disse a voz de Spider. — Está tudo bem.
— Você falou para eles que eu morri?
— Melhor que isso. Falei que eu sou você.
— Mas... — Fat Charlie tentou pensar com clareza. — Mas você ão é eu.
— Ora, eu sei disso. Mas disse a eles que sou.
— Você nem se parece comigo.
— Meu irmão, você está quase me tirando do sério. Eu já resolvi o problema. Opa. Tenho que ir. O chefão precisa falar comigo.
— Grahame Coats? Escuta, Spider...
Mas Spider já tinha desligado o telefone, e o visor ficou normal.
O robe de Fat Charlie entrou no quarto. Havia uma moça dentro dele. Ficava infinitamente melhor nela do que nele. Ela carregava uma bandeja, sobre a qual havia um copo com Alka-Seltzer e uma caneca com alguma bebida.
— Beba os dois. Beba o que tem na caneca primeiro. De uma vez.
— O que é isso?
— Gema de ovo, molho inglês, tabaco, sal, um pouco de vodca e por aí vai — respondeu ela. — Se você não morrer, vai ficar ótimo. Então — disse num tom contra o qual era impossível contra-argumentar — beba.
Fat Charlie bebeu.
— Deus do céu.
— É — concordou a moça. — Mas você ainda está vivo.
Ele não tinha muita certeza disso. Mesmo assim, bebeu o Alka-Seltzer. Um pensamento ocorreu-lhe.
— Ahm. Ahm. Olha. Na noite passada, a gente-? Ahm.
Nenhuma expressão no rosto dela.
— A gente o quê?
— A gente— você sabe. Fez— aquilo?
— Quer dizer que você não se lembra? — Ela parecia desapontada. — Você disse que nunca foi tão bom. Que era como se nunca tivesse feito amor com uma mulher antes. Você era um mistura de um deus e animal, uma máquina de fazer sexo insaciável.
Fat Charlie não sabia para onde olhar. Ela deu uma risadinha.
— Eu estou brincando. Ajudei o seu irmão a chegar em casa, nós limpamos você, e depois você sabe.
— Não — respondeu. — Não sei.
— Bom, você estava completamente desmaiado, e a sua cama é grande. Não sei ao certo onde o seu irmão dormiu. Ele deve ser forte como um touro. Já estava de pé assim que amanheceu, todo alegre e sorridente.
— Ele foi para o meu trabalho — explicou Fat Charlie. — Disse a eles que era eu.
— Mas eles não notariam a diferença? Quer dizer, vocês não são exatamente gêmeos.
— Receio que não — concordou, balançando a cabeça. E olhou para ela. Ela mostrou-lhe uma língua pequena e extremamente rosa. — Como você se chama?
— Você esqueceu? Eu me lembro do seu nome. E Fat Charlie.
— Charles — corrigiu. — Só Charles está ótimo.
— Eu sou Daisy — disse ela, e estendeu a mão. — Prazer em conhecê-lo.
Cumprimentaram-se de um jeito solene.
— Estou me sentindo um pouco melhor — informou Fat Charlie.
— Como eu disse, se você não morrer, vai ficar ótimo.
Spider estava tendo um ótimo dia no escritório. Quase nunca trabalhava em escritórios. Quase nunca trabalhava, na verdade. Tudo era novo, estranho e maravilhoso, desde o pequeno elevador que o levou até o quinto andar até os escritórios apertados da Agência Grahame Coats. Ele observava, fascinado, o armário de vidro na sala de espera, cheio de troféus empoeirados. Andou a esmo pelos escritórios e, sempre que alguém perguntava quem era, dizia “Eu sou Fat Charlie Nancy”. Dizia isso na sua voz de deus, que fazia com que tudo o que dissesse fosse praticamente verdade.
Achou a salinha em que tomavam chá e preparou várias xícaras. Levou-as para a mesa de Charlie e as organizou de um jeito artístico. Começou a brincar no computador, que pediu uma senha.
— Eu sou Fat Charlie Nancy — disse ao computador, mas ainda assim havia locais em que a rede não permitia que ele entrasse. Então ele disse: — Eu sou Grahame Coats.
A rede abriu-se para ele como uma flor.
Olhou as coisas no computador até sentir-se entediado.
Depois cuidou do que Fat Charlie tinha para fazer. Então atacou a pilha de coisas atrasadas.
Ocorreu-lhe que Fat Charlie poderia estar acordando mais ou menos àquela hora. Ligou para sua casa, para deixá-lo mais tranqüilo. Sentia que estava fazendo algum avanço quando a cabeça de Grahame Coats apareceu na porta. Grahame Coats correu os dedos pelos lábios de arminho e fez um sinal para ele.
— Tenho que ir — avisou Spider ao irmão. — O chefão precisa falar comigo. — E desligou o telefone.
— Fazendo ligações pessoais durante o período de trabalho, Nancy — observou Grahame Coats.
— De jeito nenhum.
— Foi a mim que você se referiu como “chefão”? — perguntou Grahame Coats. Eles caminharam pelo corredor até o escritório dele.
— Você é o maioral — disse Spider. — E o chefe mais “chéfico” de todos os chefes.
Grahame Coats pareceu confuso. Suspeitou que Fat Charlie estivesse caçoando dele, mas não tinha certeza, e isso o perturbou.
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