No entanto havia uma pessoa na calçada que não estava indo a lugar nenhum. Ele estava ali, de pé, encarando Fat Charlie e os outros transeuntes, e o colarinho de sua jaqueta de couro balançava ao vento. Não estava sorrindo.
Fat Charlie o viu já do final da rua. À medida que caminhava na direção do homem, tudo se tornava irreal. O dia se desfez em sua mente, e ele se deu conta do que esteve tentando se lembrar durante todo aquele tempo.
— Oi, Spider — cumprimentou Fat Charlie ao se aproximar dele.
Spider parecia ter uma tempestade dentro de si. Talvez estivesse prestes a chorar. Fat Charlie não saberia dizer. Havia emoção demais em seu rosto, tanto que as pessoas na rua evitavam olhar para ele, envergonhadas.
— Eu fui até lá — disse. Sua voz não tinha força. — Eu vi a Sra. Higgler. Ela me levou até o túmulo. Meu pai morreu, e eu não sabia.
— Ele era meu pai também, Spider. — Ele ficou se perguntando como fora capaz de esquecer Spider, como pudera achar que era apenas um sonho.
— É verdade.
O céu do fim do dia estava cheio de pequenas estrelas. Elas deslizavam e saltavam de telhado em telhado. Spider estremeceu e ficou mais ereto, como se tivesse tomado uma decisão.
— Você tem toda a razão. Nós temos que fazer isso juntos.
— Exatamente — concordou Fat Charlie. Depois perguntou: — Fazer o quê?
Mas Spider já tinha chamado um táxi.
— Somos homens com problemas — disse Spider para o mundo. — Nosso pai morreu. Nosso coração está pesado. A tristeza pesa sobre nós como o pólen pesa numa epidemia de alergia. A escuridão é o nosso fardo, e a infelicidade, nossa única companhia.
— Certo, senhores — interrompeu o motorista de táxi, animado. — Para onde vão?
— Para um lugar onde possamos encontrar os três remédios para a cura da alma — respondeu Spider.
— Talvez a gente devesse ligar para o restaurante indiano e pedir algo com curry— sugeriu Fat Charlie.
— Existem três coisas, e três coisas apenas, que podem tirar a dor da mortalidade e suavizar as tragédias da vida. E essas coisas são vinho, mulheres e música.
— Curry também é legal — acrescentou Fat Charlie, mas ninguém prestava atenção nele.
— Em que ordem? — perguntou o motorista.
— Vinho primeiro — anunciou Spider. — Um rio, um lago, um oceano de vinho.
— Eu tenho uma sensação bem ruim quanto a isso — comentou Fat Charlie, prestativo.
Spider assentiu com a cabeça.
— Sensação ruim. Sim. Ambos estamos nos sentindo mal. Esta noite partilharemos nossas sensações ruins e encararemos nossos problemas. Ficaremos de luto. Secaremos o poço amargo da mortalidade. A dor, quando partilhada, meu irmão, não é dobrada, e sim dividida. Nenhum homem é uma ilha.
— Nunca perguntes por quem os sinos dobram — citou o motorista. — Pois eles dobram por ti.
— Opa! — disse Spider — Você arranjou um koan matador, amigo.
— Obrigado — disse o motorista.
— E é assim que tudo termina mesmo. O senhor tem um ar de filósofo. Meu nome é Spider. Este é o meu irmão, Fat Charlie.
— Charles — corrigiu Fat Charlie.
— Steve — apresentou-se o motorista. — Steve Burridge.
— Senhor Burridge, o senhor gostaria de ser nosso motorista particular por esta noite?
Steve Burridge explicou que estava no fim do expediente e levaria o táxi para casa. A Sra. Burridge e os pequenos Burridges o esperavam para o jantar.
— Você ouviu isso? — comentou Spider. — Um homem de família. Olha, o meu irmão e eu somos tudo o que restou da família. E essa é a primeira vez que nos encontramos.
— Parece uma história e tanto. Vocês brigaram?
— Não, nada disso. Ele simplesmente não sabia que tinha um irmão — respondeu Spider.
— E você sabia? — perguntou Fat Charlie.
— Talvez eu soubesse — respondeu Spider. — Mas às vezes a gente esquece essas coisas.
O motorista encostou o táxi na calçada.
— Onde estamos? — perguntou Fat Charlie. Eles não tinham ido muito longe. Fat Charlie achou que estivessem só um pouco além da Fleet Street.
— Onde ele pode conseguir o que queria — respondeu o motorista. — Vinho.
Spider saiu do táxi e observou a fachada de um velho bar, feita de carvalho sujo e vidros embaçados.
— Perfeito. Pague o homem, irmão.
Fat Charlie pagou o táxi. Eles entraram. Desceram uma escada de madeira até chegar a um porão onde advogados rubicundos bebiam lado a lado com pálidos administradores de fundos do mercado financeiro. Havia serragem no chão e uma lista de vinhos escrita com giz, de modo ilegível, num quadro negro atrás do balcão.
— O que você vai beber? — perguntou Spider.
— Só uma taça de vinho tinto da casa, por favor — respondeu Fat Charlie.
Spider olhou para ele com ar sério e disse:
— Nós somos os últimos herdeiros da linhagem Anansi. Não vamos beber à memória de nosso pai com vinho tinto da casa.
— Ahm. Certo. Bom, então vou tomar o que você tomar.
Spider foi até o bar, passando pelo monte de pessoas como se elas não estivessem lá. Depois de vários minutos, voltou carregando duas taças, um saca-rolhas e uma garrafa de vinho extremamente empoeirada. Abriu a garrafa com uma facilidade que impressionou profundamente Fat Charlie, que sempre deixava cair fragmentos de cortiça dentro da garrafa. Spider serviu o vinho, tão escuro que quase chegava a ser negro. Encheu as duas taças e colocou uma delas diante de Fat Charlie.
— Um brinde. À memória do nosso pai.
— Ao nosso pai — respondeu Fat Charlie. Ele tocou sua taça na taça de Spider (milagrosamente sem derramar nenhuma gota) e provou do seu vinho. Era bastante amargo, com um toque de ervas, salgado.
— O que é isso?
— Vinho funerário, o tipo que se bebe em homenagem aos deuses. Não o produzem mais há muito tempo. E temperado com aloés e alecrim, e com as lágrimas de virgens infelizes no amor.
— E eles vendem isso num bar na Fleet Street?
Fat Charlie pegou a garrafa, mas o rótulo estava muito apagado e empoeirado para ler.
— Nunca ouvi falar.
— São esses lugares mais antigos que têm coisas boas se você pedir — respondeu Spider. — Ou pelo menos eu acho que têm.
Fat Charlie tomou outro gole de seu vinho. Era forte e tinha um gosto acre.
— Não é um vinho de degustação — disse Spider. — É um vinho para lamentar a morte de alguém. Você bebe de uma vez. Assim. — Tomou um gole grande e fez uma careta. — Assim ele fica com gosto melhor também.
Fat Charlie hesitou um instante, e então deu um grande gole naquele vinho estranho. Conseguia imaginar que podia sentir o gosto de aloés e alecrim. Ficou pensando se o gosto salgado vinha mesmo de lágrimas.
— Eles põem alecrim para a auxiliar a memória — observou Spider, e começou a encher as taças até a borda. Fat Charlie tentou explicar que não estava com muita vontade de tomar vinho naquela noite e que tinha que trabalhar no dia seguinte, mas Spider o interrompeu. — É a sua vez de fazer um brinde.
— Ahm. Certo. À nossa mãe.
Beberam à memória da mãe. Fat Charlie percebeu que começava a apreciar o gosto amargo do vinho. Sentia os olhos ardendo, e uma sensação de perda, profunda e dolorosa, apoderou-se dele. Sentiu falta de sua mãe. Sentiu saudades da infância. Até sentiu saudades do pai. Do outro lado da mesa, Spider balançava a cabeça. Uma lágrima correu por seu rosto e caiu no vinho. Ele pegou a garrafa e serviu mais vinho para ambos.
Fat Charlie bebeu.
A tristeza apoderou-se dele enquanto bebia, enchendo sua cabeça e seu corpo com o sentimento de perda e com a dor da ausência, engolfando-o como ondas no oceano.
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