Essas pessoas faziam e aconteciam na máquina dos sonhos, e de repente caíam, completamente vestidas, na água com 1 a 3 metros de profundidade. Todas ficaram molhadas, aterrorizadas, balançando os braços.
Casualmente, como quem não quer nada, o sujeito descolado atravessou a piscina, pisando sobre a cabeça e as mãos das pessoas sem jamais perder o equilíbrio. Quando alcançou o outro lado da piscina, onde havia uma ladeira íngreme, deu um grande salto e mergulhou nas luzes noturnas e brilhantes de Los Angeles, que o engoliram como se fossem um oceano.
As pessoas na piscina debatiam-se para sair dali, furiosas, revoltadas, confusas, molhadas e, em alguns casos, quase afogadas.
Era início de manhã no sul de Londres. A luz tinha um tom azul-acinzentado.
Fat Charlie saiu da cama, perturbado por seu sonho, e foi até a janela. As cortinas estavam abertas. Podia ver o sol nascendo, uma grande laranja avermelhada cercada de nuvens cinzentas tingidas de vermelho. O tipo de céu que faz com que até a pessoa mais prosaica do mundo descubra uma imensa vontade de começar a fazer pinturas a óleo.
Fat Charlie olhou para o sol nascente. “Vermelho ao nascente, chuva de repente”, pensou.
Tivera um sonho tão estranho. Uma festa em Hollywood. O segredo de Caminhar sobre as Águas. F aquele homem, que era ele e não era ao mesmo tempo...
Fat Charlie deu-se conta de que conhecia o homem do sonho de algum lugar e também de que, se permitisse, isso o deixaria irritado pelo resto do dia, como um pedacinho de fio dental preso entre dois dentes ou como a diferença exata entre as palavras lúbrico e lascivo — a dúvida permaneceria ali e o deixaria irritado.
Olhou pela janela.
Não eram nem seis da manhã, e o mundo estava em silêncio. Um passeador de cachorro no fim da rua encorajava um lulu da Pomerânia a defecar. Um carteiro ia lentamente de casa em casa e voltava à sua van vermelha. Então algo se moveu na calçada sob sua casa, e Fat Charlie olhou.
Um homem estava parado perto da cerca viva. Quando viu que Fat Charlie, de pijama, olhava para ele, sorriu e acenou com a mão. Houve um momento de reconhecimento que abalou profundamente Fat Charlie: o homem tinha um rosto familiar, tanto o sorriso como o gesto, embora não conseguisse descobrir exatamente como. Alguns elementos do sonho permaneciam na cabeça de Fat Charlie, fazendo o mundo parecer irreal, o que era desconfortável para ele. Esfregou os olhos e, quando os abriu, a pessoa perto da cerca viva havia desaparecido. Fat Charlie imaginava que o homem tinha saído dali e descido a rua até desaparecer no restinho da névoa da manhã, levando consigo qualquer elemento de esquisitice, irritação ou loucura que trazia.
E então a campainha tocou.
Fat Charlie colocou seu robe e desceu as escadas.
Nunca havia usado a corrente de segurança antes de abrir a porta, jamais em toda a vida, mas antes de girar a maçaneta colocou a corrente no lugar e só abriu uma fresta de uns 15 centímetros.
— Bom dia — cumprimentou, inseguro.
O sorriso que aparecia na fresta da porta seria capaz de iluminar uma cidade inteira.
— Você me chamou e eu vim — disse o estranho. — E então? Não vai abrir a porta para mim, Fat Charlie?
— Quem é você?
Enquanto dizia a frase, se deu conta de onde vira aquele homem antes: no funeral de sua mãe, na pequena capela do crematório. Foi a última vez que vira aquele sorriso. E sabia qual era a resposta para sua pergunta mesmo antes de obter uma resposta.
— Sou o seu irmão — informou o homem.
Fat Charlie fechou a porta. Tirou a corrente e escancarou a porta. O homem ainda estava ali.
Fat Charlie não tinha muita certeza sobre como cumprimentar um irmão potencialmente imaginário, em cuja existência tinha se recusado a acreditar. Eles ficaram ali, de pé, um de um lado da porta, o outro do outro, até que seu irmão disse:
— Você pode me chamar de Spider. Não vai me convidar para entrar?
— Sim. Vou. Claro. Por favor. Entre.
Fat Charlie levou o homem para o andar de cima.
Coisas impossíveis acontecem. Quando acontecem, a maioria das pessoas simplesmente dá um jeito de lidar com elas. Hoje, como em todos os outros dias, mais ou menos 5 mil pessoas sobre a face da Terra experimentarão uma dessas coisas que têm uma chance em um milhão de acontecer. Nenhuma delas se recusará a acreditar no que seus sentidos lhes dizem. A maioria dirá o equivalente à frase (em sua própria língua): “Que mundo estranho, não é?”; e seguirá adiante. Embora uma parte de Fat Charlie tentasse imaginar uma explicação lógica, sensata e racional para o que estava acontecendo, a maior parte dele simplesmente se acostumava com a idéia de que um irmão que ele não conhecia estava atrás dele subindo a escada para o andar de cima. Chegaram à cozinha e lá ficaram.
— Aceita um chá?
— Você tem café?
— Só instantâneo, infelizmente.
— Tudo bem.
Fat Charlie pôs a chaleira no fogo.
— Você vem de longe então? — perguntou.
— De Los Angeles.
— Como foi o vôo?
O homem sentou-se à mesa da cozinha. Deu de ombros. Era o tipo de dar de ombros que poderia significar qualquer coisa.
— Ahm. Você planeja ficar muito tempo?
— Não pensei muito nisso ainda.
O homem — Spider — examinava a cozinha de Fat Charlie como se nunca tivesse visto uma cozinha na vida.
— Como você toma o seu café?
— Negro como a noite, doce como o pecado.
Fat Charlie colocou a caneca diante do homem e ofereceu-lhe o açucareiro.
— Sirva-se à vontade.
Enquanto Spider colocava colher após colher de açúcar em seu café, Fat Charlie ficou sentado do lado oposto da mesa, observando-o.
Havia certa semelhança entre os dois homens. Isso era indiscutível, embora não explicasse a intensa sensação de familiaridade que Fat Charlie sentia ao ver Spider. Seu irmão tinha a aparência que ele gostava de imaginar que teria, se não visse no espelho do banheiro com monótona regularidade um sujeito com uma aparência que deixava um tanto a desejar. Spider era mais alto, mais magro, mais interessante. Usava uma jaqueta de couro preta e vermelha e calças de couro pretas, e parecia sentir-se confortável nelas. Fat Charlie tentou se lembrar se o sujeito descolado estava vestido assim no sonho. Havia algo sobrenatural nele: simplesmente estar do outro lado da mesa, diante desse homem, fazia Fat Charlie se sentir esquisito, desajeitado e um tanto tolo. Não eram as roupas que Spider usava, e sim saber que se ele, Fat Charlie, as vestisse, pareceria alguém usando um disfarce não convincente. Não era o sorriso de Spider — um sorriso casual, alegre —, e sim a fria e incontornável certeza de que ele, Fat Charlie, poderia treinar sorrir na frente do espelho até o fim dos tempos que nunca conseguiria sorrir de um jeito tão encantador, tão confiante, tão espetacularmente afável.
— Você foi à cremação da mamãe — disse Fat Charlie.
— Eu pensei em falar com você depois do velório. Mas não sabia se era uma boa idéia.
— Teria sido uma boa idéia. — Fat Charlie se lembrou de alguma coisa. — Achei que você iria também ao funeral do nosso pai.
— Quê?
— O funeral dele. Na Flórida. Uns dois dias atrás.
Spider balançou a cabeça.
— Ele não está morto. Tenho certeza de que eu saberia caso ele estivesse.
— Ele morreu. Eu o enterrei. Quer dizer, enchi a cova de terra. Pergunte à Sra. Higgler.
— Como ele morreu?
— Ataque do coração.
— Isso não quer dizer nada. Só significa que ele morreu.
— Bom, pois é isso. Ele morreu.
Spider parou de sorrir. Agora olhava fixamente para seu café, como se pensasse que poderia achar uma resposta ali.
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