Havia grandes fotografias coloridas em porta-retratos prateados sobre o aparador: fotografias de Rosie quando era criança e de seus pais. Fat Charlie estudou-as com afinco, procurando pistas para solucionar o mistério que era Rosie. O pai dela, que morrera quando Rosie tinha 15 anos, era um homem enorme. Primeiro fora um cozinheiro, depois virara um chef e, por último, dono de restaurante. Em todas as fotos, aparecia totalmente arrumado e equipado, como se tivesse alguém contratado especialmente para vesti-lo, rotundo e sorridente, com o braço sempre posicionado para que a mãe de Rosie o segurasse.
— Era um cozinheiro sensacional — dissera Rosie.
Nas fotografias, sua mãe era uma mulher sorridente e cheia de curvas. Agora, 12 anos mais tarde, parecia uma Eartha Kitt esquelética, e Fat Charlie nunca a viu sorrir.
— A sua mãe cozinha de vez em quando? — perguntou Fat Charlie depois daquela primeira visita.
— Não sei. Eu nunca a vi cozinhar nada.
— O que ela come? Quer dizer, ela não pode sobreviver à base de água e biscoito.
— Acho que ela pede comida.
Fat Charlie pensou ser bastante provável que a mãe de Rosie saísse à noite, na forma de um morcego, para sugar o sangue de inocentes que dormiam. Certa vez mencionou essa sua teoria a Rosie, mas ela não conseguiu ver graça naquilo.
A mãe dela havia dito que tinha certeza de que Fat Charlie queria se casar com ela por causa de seu dinheiro.
— Que dinheiro? — perguntara Rosie. Sua mãe fizera um gesto amplo na direção do apartamento, um gesto que englobava as frutas de cera, a mobília antiga, os quadros nas paredes, e então comprimiu os lábios. — Mas tudo isso é seu — dissera Rosie, que vivia à base de seu salário, trabalhando para um centro de caridade de Londres. E seu salário não era muito alto. Para complementá-lo, Rosie utilizava o dinheiro que seu pai lhe deixara no testamento. Ele serviu para comprar um pequeno apartamento, que ela dividia com uma sucessão de australianas e neozelandesas, e um carro usado, um Golf.
— Eu não vou viver para sempre — dizia a mãe de Rosie, fungando de um jeito que implicava que tinha toda a intenção de viver para sempre, ficando cada vez mais difícil, mais magra e mais pétrea à medida que o tempo passava, comendo cada vez menos até ser capaz de viver à base de nada além de ar, saliva e frutas de cera.
Rosie, ao sair do aeroporto de Heathrow para levar Fat Charlie para casa, decidiu que era melhor mudarem de assunto. Então disse:
— Não tem água lá no meu apartamento. O prédio todo está sem água.
— O que houve?
— A Sra. Klinger, no andar de baixo. Ela disse que tem alguma coisa vazando.
— Talvez a própria Sra. Klinger.
— Charlie!. Então... eu estava pensando. Será que eu poderia tomar banho na sua casa hoje?
— Quer que eu ensaboe você?
— Charlie.
— Claro que pode. Sem problemas.
Rosie ficou olhando para a traseira do carro da frente. Ela tirou a mão do câmbio e apertou a enorme mão de Fat Charlie.
— A gente vai se casar logo, logo.
— Eu sei.
— Bom, o que eu quero dizer é que... teremos bastante tempo pra isso, não é?
— Bastante tempo.
— Sabe o que minha mãe falou pra mim um dia?
— Humm— Ela fez uma defesa da morte por enforcamento?
— Não. Disse que, se um casal recém-casado colocar uma moeda dentro de um pote todas as vezes em que fizer amor no primeiro ano e tirar uma todas as vezes que fizer amor nos anos seguintes, o pote nunca ficará vazio.
— E isso quer dizer que...?
— Bom. E interessante, não acha? Vou chegar à sua casa às oito, acompanhada do meu patinho de borracha. Como estão as suas toalhas?
— Ahm...
— Eu levo minha toalha então.
Fat Charlie não acreditava que seria o fim do mundo se eles, uma vez ou outra, colocassem uma moeda no pote antes de trocar as alianças e cortar o bolo de casamento, mas Rosie tinha suas próprias opiniões a respeito, e o assunto estava encerrado. O pote permanecia totalmente vazio.
“O problema”, pensou Fat Charlie assim que entrou em casa, “de chegar a Londres após uma breve viagem a outro país é que, se você chegar pela manhã, não há muita coisa para fazer no resto do dia.”
Fat Charlie era um homem que preferia sempre trabalhar. Ele considerava o ato de deitar-se num sofá e assistir a Countdownl (Tradicional game show da TV britânica, é uma espécie de instituição local. Exibido desde 1982, vai ao ar diariamente à tarde e já ultrapassou a marca de 4 mil programas) uma lembrança da época em que fizera parte do grupo dos desempregados. Decidiu que a coisa mais sensata a fazer seria ir um dia mais cedo para o trabalho. Nos escritórios da Agência Grahame Coats, em Aldwych, no quinto e último andar, ele se sentia parte do fluxo do mundo. Teria conversas interessantes com os colegas na sala de chá. Todo o espetáculo da vida se desdobraria perante seus olhos, majestoso em sua complexidade, implacável e inflexível em seu funcionamento. As pessoas iam gostar de vê-lo.
— Você só volta ao trabalho amanhã — disse Annie, a recepcionista, quando Fat Charlie entrou. — Eu disse às pessoas que você só voltaria amanhã. Quando elas ligaram.
Ela não parecia feliz com a situação.
— Não consegui ficar longe — observou Fat Charlie.
— Claro que não — respondeu ela com certo desdém. — Você precisa retornar a ligação de Maeve Livingstone. Ela liga todos os dias.
— Pensei que ela fosse assunto do Grahame Coats.
— Bom, ele quer que você fale com ela. Só um instante.
Ela atendeu ao telefone.
Era sempre assim que se referiam ao chefe, com os dois nomes: “Grahame Coats”. Não “senhor Coats”. Nunca apenas Grahame. Afinal de contas, era a agência dele, e representava as pessoas. Ficava com uma porcentagem do que elas ganhavam por ter exercido o direito de representá-las.
Fat Charlie foi até seu escritório, uma salinha minúscula que partilhava com um armário de arquivo. Havia um post-it amarelo na tela de seu computador com a mensagem: “Venha até minha sala. GC”. Ele atravessou o corredor até o escritório enorme de Grahame Coats. A porta estava fechada. Ele bateu e, sem saber ao certo se ouviu alguma resposta ou não, abriu a porta e enfiou a cabeça.
A sala estava vazia. Não havia ninguém lá.
— Ahm... oi? — arriscou Fat Charlie, não muito alto. Ninguém respondeu. Havia, no entanto, uma certa desordem na sala: a estante de livros estava perto da parede formando um ângulo e, do espaço por trás dela, podia-se ouvir o som de batidas, como se fossem de um martelo.
Ele fechou a porta do jeito mais suave possível e voltou para sua mesa.
O telefone tocou. Ele atendeu.
— Aqui é Grahame Coats. Venha me ver.
Dessa vez, Grahame Coats estava sentado à mesa, e a estante de livros, alinhada à parede. Ele não convidou Fat Charlie para se sentar. Era um homem branco de meia-idade, com cabelo bem claro, já ficando careca. Se você visse Grahame Coats e imediatamente pensasse num furão albino vestindo um terno caro, não seria a primeira pessoa a ter essa impressão.
— Vejo que está de volta — disse Grahame Coats. — Por assim dizer.
— Sim — respondeu Fat Charlie. Como Grahame Coats não parecia particularmente feliz com a volta antecipada de Fat Charlie, acrescentou: — Me desculpe.
Grahame Coats pressionou os dois lábios com os dedos, olhou para um papel sobre a mesa e voltou os olhos novamente para Fat Charlie.
— Deram a entender que você não estaria de volta até amanhã. Meio cedo para voltar, não?
— Nós., quer dizer, eu cheguei esta manhã. Da Flórida. Achei que fosse bom vir para cá. Muita coisa a ser feita. Para mostrar boa vontade. Se estiver tudo bem.
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