— Absolutotalmente — concordou Grahame Coats. A palavra, praticamente um acidente automobilístico entre “absolutamente” e “totalmente”, sempre fazia Fat Charlie se contorcer. — Como quiser.
— Foi o funeral do meu pai.
Grahame mexeu o pescoço feito um furão.
— Ainda assim, isso será descontado de um dos seus dias de licença.
— Certo.
— Maeve Livingstone. Viúva desconsolada de Morris. Precisa ser consolada. Palavras bonitas, promessas gentis. Roma não foi construída num só dia. Todo o processo de fazer o inventário dos bens de Morris Livingstone e passar o dinheiro para ela continua a todo vapor. Ela me liga praticamente todo dia só para ser consolada. Então eu passo a tarefa a você.
— Certo. Então... ahm. Os que trabalham nunca descansam.
— Quem trabalha sempre colhe — respondeu Grahame Coats, mexendo o dedo.
— Mãos à obra? — sugeriu Fat Charlie.
— Arregaçar as mangas — disse Grahame Coats. — Bom, foi ótimo conversar com você. Mas ambos temos muito trabalho a fazer.
Havia alguma coisa na presença de Grahame Coats que sempre fazia Fat Charlie: a) falar usando clichês e b) ter devaneios imaginando enormes helicópteros negros primeiro atirando e depois despejando baldes de napalm nos escritórios da Agência Grahame Coats. Fat Charlie não se encontrava na agência quando imaginava a cena. Estaria sentado numa cadeira do lado de fora de um pequeno café, no outro lado de Aldwych, tomando um café cremoso e de vez em quando vibrando de alegria ao ver a precisão com que um helicóptero jogava o balde de napalm.
Com isso você pode supor que não há nada para saber quanto ao trabalho de Fat Charlie, com exceção de que se sentia infeliz — e com razão. Fat Charlie tinha facilidade com números, o que o mantinha em seu emprego, e uma falta de jeito e uma timidez que o impediam de dizer às pessoas o que fazia de fato, e o quanto fazia. Ao seu redor, Fat Charlie via pessoas ascendendo implacavelmente aos níveis da incompetência, enquanto ele permanecia com o nível de aplicação com que havia entrado, desempenhando tarefas essenciais até o dia em que voltava ao grupo dos desempregados e começava a ver televisão novamente. Nunca ficou sem trabalho durante muito tempo, mas isso tinha acontecido vezes demais na última década para que Fat Charlie se sentisse totalmente seguro em qualquer emprego. Mas ele não levava as coisas para o lado pessoal.
Telefonou para Maeve Livingstone, mulher de Morris Livingstone, que fora o mais famoso comediante baixinho oriundo de Yorkshire em toda a Inglaterra e que era cliente da Agência Grahame Coats havia muito tempo.
— Alô? Aqui é Charles Nancy, do departamento de contabilidade da Agência Grahame Coats.
Ah — disse a mulher do outro lado da linha. — Pensei que o próprio Grahame ligaria para mim.
— Ele está um pouco ocupado. Então ele., ahm — delegou a tarefa. A mim. Então — Posso ajudar?
— Não sei ao certo. Eu queria saber... bom, o gerente do banco é que queria saber... quando o resto do dinheiro dos bens do Morris vai aparecer. O Grahame Coats explicou para mim da última vez... bom, eu acho que foi da última vez em que nos falamos... que o dinheiro foi investido... quer dizer, eu entendo que essas coisas levam tempo... ele disse que caso contrário eu perderia muito dinheiro...
— Bom, eu sei que ele está cuidando do problema. Mas essas coisas realmente levam tempo.
— Sim — disse ela. — Suponho que levam tempo mesmo. Liguei para a BBC e eles disseram que realizaram vários pagamentos desde a morte de Morris. Sabia que lançaram toda a série Morris Livingstone, I Presume em DVD? E vão lançar as duas séries de Short Baek and Sides no Natal.
— Eu não sabia — admitiu Fat Charlie. — Mas tenho certeza de que Grahame Coats sabe. Ele sempre está a par dessas coisas.
— Eu tive que comprar meu próprio DVD — disse, melancólica. — Mesmo assim, tudo voltou. O pessoal se maquiando nos bastidores, aquela atmosfera do clube da BBC. E eu vou te contar uma coisa, me fez sentir falta de estar sob um holofote. Foi assim que eu conheci o Morris. Eu era dançarina. Tinha minha própria carreira.
Fat Charlie disse a ela que informaria Grahame Coats de que o gerente do banco da sra. Livingstone estava um pouco preocupado e depois desligou.
Ficou se perguntando como alguém pode sentir falta de estar sob os holofotes.
Nos piores pesadelos de Fat Charlie, um holofote brilhava sobre ele, proveniente de um céu escuro, sobre um grande palco, e figuras ocultas tentavam forçá-lo a ficar sob a luz do holofote e cantar. Por mais rápido que ele corresse, ou para mais longe, por melhor que se escondesse, sempre o encontravam e o arrastavam de volta para o palco, diante de dezenas de pessoas ansiosas por um espetáculo. Ele sempre acordava antes de reamente cantar, suando e tremendo, com o coração batendo feito um tambor no peito.
O dia de trabalho passou. Fat Charlie trabalhava ali havia quase dois anos. Estava na empresa havia mais tempo que todo mundo, com exceção do próprio Grahame Coats. A rotatividade na agencia era grande. Mesmo assim, ninguém gostava muito de vê-lo por ali.
Fat Charlie às vezes sentava-se à sua mesa e ficava olhando através da janela enquanto a chuva cinzenta e insensível lá fora batia contra o vidro. Então se imaginava numa praia tropical, com as ondas de um mar impossivelmente azul arrebentando sobre a areia impossivelmente dourada. Muitas vezes se perguntava se as pessoas na praia, na sua imaginação, observando os dedos brancos das ondas acariciando a areia, ouvindo os pássaros tropicais assobiando nas palmeiras, não sonhavam estar na Inglaterra, na chuva, numa sala do tamanho de um caixote, no quinto andar de um escritório, a uma distância segura do tédio que representava areia a dourada e da chatice infernal de um dia tão perfeito que nem mesmo um drink cremoso com excesso de rum e um guarda-chuvinha de papel vermelho poderia fazer alguma coisa para melhorar os ânimos. E isso o consolava.
No caminho para casa, parou na loja de bebidas e comprou uma garrafa de vinho branco alemão, uma vela com cheiro de patchouli no pequeno supermercado ao lado e pegou uma pizza na pizzaria ali perto.
Rosie ligou durante sua aula de ioga, às 7h30, para avisar que se atrasaria um pouco, depois de seu carro, às 8h, para avisar que estava presa no trânsito, e finalmente às 9hl 5, para avisar que estava virando a esquina, mas aí Fat Charlie já tinha bebido quase toda a garrafa de vinho sozinho e consumido apenas um solitário pedaço de pizza.
Mais tarde, ele se perguntaria se tinha sido o vinho que o fizera dizer aquilo.
Rosie chegou às 9h20, com toalhas, um saco de supermercado cheio de xampus, sabonetes e um grande pote de creme para o cabelo. Ela recusou, de modo vigoroso mas bem-humorado, a taça de vinho e o pedaço de pizza oferecidos por Fat Charlie. Explicou que tinha comido enquanto estava presa no tráfego. Tinha pedido pelo telefone. Fat Charlie sentou-se na cozinha, serviu-se da última taça de vinho branco e catou o queijo e o pepperoni da cobertura da pizza fria enquanto Rosie foi até o banheiro e começou, de repente, a gritar muito alto.
Fat Charlie chegou ao banheiro antes que o primeiro grito morresse no ar, no exato momento em que Rosie enchia os pulmões para soltar outro grito. Estava convencido de que a encontraria ensopada em sangue. Para sua surpresa e alívio, ela não estava sangrando. De calcinha e sutiã azuis, apontava para a banheira, no centro da qual havia uma aranha de jardim grande e marrom.
— Desculpe — choramingou. — Me pegou de surpresa.
— Acontece — disse Fat Charlie. — Vou abrir a torneira e deixar a água levá-la embora.
— Não ouse fazer uma coisa dessas! — ameaçou Rosie com firmeza. — É um ser vivo. Leve para fora.
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