As histórias de Anansi são da época em que as pessoas contavam histórias umas às outras. Na África, onde tudo começou, mesmo antes de as pessoas pintarem leões e ursos nas paredes das cavernas, já contavam histórias sobre macacos, leões e búfalos: eram grandes histórias. As pessoas tinham essa tendência de contar histórias. Assim faziam o mundo ter sentido. Tudo o que corria, andava, balançava e se arrastava tinha que aparecer nessas histórias, e diferentes tribos veneravam diferentes criaturas.
O Leão era o rei dos animais, mesmo naquela época. A Gazela era a mais rápida, o Macaco era o mais bobo e o Tigre era o mais terrível, mas as pessoas não queriam ouvir histórias sobre eles.
Anansi deu seu nome às histórias. Toda história é de Anansi. Antigamente, antes de as histórias serem de Anansi, elas todas pertenciam ao Tigre (que é o nome que as pessoas das ilhas dão a todos os grandes felinos), e as histórias eram sombrias e macabras, cheias de dor. Nenhuma delas tinha final feliz. Mas isso foi há muito tempo. Hoje em dia, as histórias são de Anansi.
Já que a gente acabou de sair de um funeral, deixa eu te contar uma história sobre Anansi, da época em que a avó dele morreu. (Não, tudo bem: ela era uma mulher muito velha, e morreu enquanto dormia quanto. Acontece.) Ela morreu muito longe de casa, então Anansi atravessa a ilha com o carrinho de mão, pega o corpo da avó, coloca no carrinho e carrega pra casa. É que ele queria enterrar ela perto da figueira que ficava atrás da cabana dele.
Então ele está lá, atravessando a cidade, depois de empurrar o cadáver da avó no carrinho a manhã toda, e aí pensa “Eu preciso beber uísque”. Ele entra na loja — tinha uma loja na vila, uma loja que vendia de tudo, e o dono era um homem muito nervoso. Anansi entra e bebe um pouco de uísque. Bebe um pouco mais e então pensa “vou fazer uma brincadeira com esse sujeito”, então ele diz pro dono da loja: “Leva um pouco de uísque pra minha avó, ela tá dormindo no carrinho lá fora. Talvez você precise acordar ela, porque ela dorme feito uma pedra”.
Então o dono da loja vai até o carrinho com uma garrafa e diz pra velha: “Ei, toma o seu uísque”, mas a velha não diz nada. E o dono da loja fica cada vez mais bravo, porque ele era um homem muito nervoso, e diz: “Levanta, velha, levanta e toma o seu uísque”, mas a velha não diz nada. Aí ela faz uma coisa que os mortos às vezes fazem quando o dia está muito quente: ela solta gases bem alto. O dono da loja fica tão fulo com a velha por soltar gases na cara dele que ele bate nela, depois bate de novo e de novo, e aí ela cai do carrinho.
Anansi vai lá fora e começa a chorar, choramingar e falar sem parar, dizendo: “Minha avó está morta, olha só o que você fez! Seu assassino, seu malfeitor!” Então o dono da loja fala para Anansi “Não conta pra ninguém que eu fiz isso”, e dá a ele cinco garrafas de uísque cheias, um saco de ouro e um saco cheio de banana pacova, abacaxi e manga para ele parar de fazer alarde e ir embora.
(É que ele acha que matou a avó de Anansi.)
Então Anansi leva o carrinho pra casa e enterra a avó debaixo da figueira.
No dia seguinte, o Tigre está passando pela casa de Anansi e sente cheiro de comida. Ele entra sem ser convidado, e lá está Anansi com um banquete. Anansi, sem alternativa, chama o Tigre pra se sentar e comer com ele.
O Tigre diz: “Irmão Anansi, onde você conseguiu toda essa comida? Não mente pra mim. E onde você conseguiu essas garrafas de uísque e esse saco cheio de moedas de ouro? Se você mentir pra mim, vou rasgar a sua garganta’.
Então Anansi diz: “Não posso mentir pra você, Irmão Tigre. Consegui tudo isso porque levei minha avó morta até a vila num carrinho de mão. E o dono da loja me deu todas essas coisas porque eu levei minha avó morta”.
O Tigre não tinha uma avó viva, mas sua mulher tinha uma mãe. Então ele vai pra casa, chama a mãe da mulher e diz: “Vem aqui um pouco porque eu e você precisamos conversar”. Aí ela sai, olha em volta e diz: “O que foi?” Bom, o Tigre mata ela, apesar de a mulher dele amar a mãe, e coloca o corpo dela num carrinho de mão.
Então ele leva o carrinho até a vila, com a sogra morta dentro. Ele grita: “Quem quer um cadáver? Quem quer uma avó morta?” Mas todas as pessoas só caçoavam dele e riam dele. Quando viram que ele estava falando sério e não ia sair dali, jogaram um monte de frutas podres nele, até ele fugir.
Não era a primeira vez que Anansi fazia o Tigre de bobo, e não seria a última. A mulher do Tigre nunca deixou ele esquecer que tinha matado a mãe dela. Em alguns dias o Tigre até deseja nunca ter nascido.
Essa é uma história de Anansi.
Claro que todas as histórias são histórias de Anansi. Mesmo esta aqui.
Antigamente todos os animais queriam que as histórias tivessem o nome deles, na época em que as canções que criaram o mundo ainda estavam sendo cantadas, na época em que ainda estavam cantando o céu, o arco-íris e o oceano. Foi nessa época, quando os animais eram gente, mas também eram bicho, que Anansi, a aranha, fez todos de bobo, principalmente o Tigre, porque queria que as histórias tivessem o nome dele.
As histórias são como aranhas, com pernas compridas, e também são como teias de aranha, onde um homem pode ficar todo emaranhado, mas também são tão bonitas quando você vê elas embaixo de uma folha com orvalho, o jeito elegante que elas se ligam entre si, uma a uma.
Como? Você quer saber se Anansi parecia uma aranha? Claro, exceto quando tinha a aparência de homem.
Não, ele nunca mudava de forma. Tudo depende do jeito que você conta a história. Só isso.
3
No qual há uma reunião de família
Fat Charlie voltou de aviáo para casa, na inglaterra. De uma forma ou de outra, era o mais próximo de um “lar” que ele encontraria.
Rosie estava esperando por ele quando saiu da alfândega, carregando uma pequena mala e uma grande caixa de papelão selada com fita adesiva. Ela deu-lhe um grande abraço.
— E então? Como foi?
Ele deu de ombros.
— Poderia ter sido pior.
— Bom — respondeu ela —, pelo menos você não tem mais que se preocupar com ele aparecendo no seu casamento e fazendo você passar vergonha.
— Tem isso também.
— Minha mãe diz que a gente deveria adiar o casamento por alguns meses, em sinal de respeito.
— A sua mãe quer apenas cancelar o casamento e pronto.
— Besteira. Ela acha que você é um ótimo partido.
— Nem mesmo uma mistura de Brad Pitt, Bill Gates e príncipe William é um bom partido para a sua mãe. Ninguém sobre a face da Terra é bom o suficiente para ser o genro dela.
— Ela gosta de você — respondeu Rosie, moldando-se à situação, mas sem convicção na voz.
A mãe de Rosie não gostava de Fat Charlie, e todos sabiam disso. Ela era um amontoado de preconceitos arraigados, preocupações e rixas familiares. Morava num apartamento magnífico na Wimpole Street, com nada dentro da geladeira além de garrafas de água vitaminada e biscoitos de centeio. Havia frutas de cera nas tigelas sobre os aparadores de antiquário, que eram espanadas duas vezes por semana.
Em sua primeira visita à casa da mãe de Rosie, Fat Charlie deu uma mordida em uma das maçãs de cera. Ele estava muito nervoso, tão nervoso que pegou uma maçã — podemos dizer em sua defesa que era uma réplica perfeita de uma maçã de verdade — e deu uma mordida nela. Rosie havia sinalizado loucamente que não. Ele cuspiu o pedaço de cera na mão e pensou em fingir que gostava de fruta de cera ou que sabia o tempo todo que se tratava de uma maçã de cera e fizera aquilo de propósito, só para ser engraçado. No entanto a mãe de Rosie ergueu uma sobrancelha, caminhou até ele, pegou o resto da maçã, explicou com poucas palavras que as boas frutas de cera custavam muito caro hoje em dia, se é que era possível encontrá-las, e jogou na lata de lixo. Ele permaneceu sentado no sofá durante todo o restante da tarde, com gosto de vela na boca, enquanto a mãe de Rosie o observava para se certificar de que ele não tentaria dar outra mordida em suas preciosas frutas de cera ou abocanhar a perna de uma cadeira Chippendale do século XVIII.
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