Mesmo assim, tinha que continuar. Precisava de uma razão concreta para continuar lutando pela sobrevivência, e sabia disso.
Havia se passado uma semana depois do eclipse, talvez mais, Estava começando a perder a noção do tempo. Não comia nem dormia regularmente, o que era contra os seus hábitos. Os sóis iam e vinham no céu; o ar ficava mais quente e mais frio, o tempo passava; entretanto, sem a progressão de café da manhã, almoço, jantar, sono, Sheerin não fazia ideia de como o tempo estava passando. Sabia apenas que estava perdendo rapidamente as forças.
Não fazia uma refeição decente desde a chegada da Escuridão. Daquele momento em diante, vivera de migalhas, nada mais… frutinhas, sementes, folhas, qualquer coisa.
Felizmente, não comera nada que lhe fizesse mal, mas se sentia muito fraco. O valor nutritivo da sua dieta atual era próximo de zero. As roupas, em frangalhos, pendiam do seu corpo como uma mortalha. Não tinha coragem de olhar debaixo delas. Imaginava que sua pele devia estar se derramando em pregas sobre os ossos. Sentia a garganta seca, a língua inchada, a cabeça pesada. E aquela sensação de vazio no estômago era muito desagradável.
Nos momentos de descontração, dizia a si mesmo que estava descobrindo agora por que razão dedicara tantos anos de sua vida a acumular uma respeitável camada de gordura.
Os momentos de descontração, porém, se tornavam mais raros a cada dia que passava. A fome estava minando o seu otimismo. Não podia continuar vivendo daquele jeito. Seu corpo era grande, estava acostumado a refeições regulares e substanciais, as reservas estavam se esgotando.
Talvez fosse mais simples deitar-se debaixo de um arbusto e descansar… descansar… descansar…
Tinha que encontrar comida de verdade. Depressa.
O bairro que estava atravessando no momento, embora deserto como os outros, parecia ter sofrido menos do que os que deixara para trás. Tinha havido incêndios, também, mas algumas casas pareciam ter sido poupadas. Sheerin experimentou, com paciência, as portas de todas as casas que ainda estavam de pé. Trancadas. Todas trancadas.
Que gente organizada!, pensou. Que presença de espírito! O mundo está mergulhado no caos; eles estão abandonando suas residências, aterrorizados, fugindo para a floresta, para o campus, para a cidade, para deus sabe onde… e se dão ao trabalho de trancar a porta antes de sair! Como se tivessem a intenção de passar alguns dias fora, até passar o caos, e depois voltar para seus livros, seus armários cheios de roupas bonitas, seus jardins. Será que não haviam percebido que o caos não iria passar?
Talvez, pensou Sheerin, eles não tenham fugido. Talvez estejam escondidos atrás dessas portas fechadas, encolhidos no porão, esperando que as coisas voltem ao normal.
Ou então olhando para mim da janela do segundo andar, torcendo para que eu vá embora logo. Experimentou outra porta. Outra. Outra. Todas trancadas. Nenhuma resposta.
— Ei! Alguém em casa? Deixe-me entrar!
Silêncio.
Ficou olhando para a grossa porta de madeira à sua frente, a imaginar os tesouros que esconderia, os alimentos à espera de serem comidos, a banheira, a cama macia.
E ali estava ele, do lado de fora, sem poder entrar. Sentia-se um pouco como o garotinho da fábula, que recebera a chave mágica para o jardim dos deuses, onde havia árvores de jujuba e fontes de mel, mas era pequeno demais para enfiá-la na fechadura. Teve vontade de chorar.
Lembrou-se, então, de que estava carregando uma machadinha. Começou a rir. A fome devia tê-lo deixado de miolo mole! O garotinho da história insiste, oferecendo as luvas, as botas e o gorro a vários animais que passam, para que o ajudem. Eles sobem nas costas uns dos outros, o menino trepa nas costas do último e, finalmente, consegue alcançar a fechadura. E ali está Sheerin, já bem grandinho, olhando para uma porta trancada, com uma machadinha na mão!
Arrombar a porta? Simplesmente arrombar a porta? Era totalmente contra os princípios que Sheerin sempre havia defendido. Olhou para a machadinha como se esta tivesse se transformado em uma serpente em sua mão. Arrombar a porta… não, isso era ilegal! Como podia ele, Sheerin 501, professor de psicologia da Universidade de Saro, derrubar uma porta a machadadas, invadir a casa de um cidadão honesto e servir-se à vontade do que encontrasse lá dentro?
Com toda a facilidade, disse para si mesmo, rindo. Os tempos são outros.
Levantou a machadinha.
Entretanto, não era tão fácil assim. Os músculos enfraquecidos pela fome protestaram. Ainda era capaz de levantar a machadinha, é claro, mas o golpe lhe pareceu pateticamente fraco e sentiu uma dor aguda nos braços quando a lâmina fez contato com a resistente porta de madeira. Tinha conseguido rachar a porta? Não. Tirar uma lasca? Talvez. Uma lasca pequena. Tentou de novo, com mais força. É isso aí, Sheerin. Você está pegando o jeito. Mais forte! Mais forte!
Depois de algumas tentativas, parou de sentir dor. Fechou os olhos, respirou fundo, levantou de novo a machadinha. A porta estava começando a rachar. Havia uma fenda perceptível. Mais um golpe. Mais um. Com mais uns cinco ou seis golpes bem aplicados, ela se racharia ao meio.
Comida. Banho. Cama. Força! Força!
De repente, a porta se abriu. Sheerin ficou tão surpreso que quase perdeu o equilíbrio. Cambaleou para frente, apoiou-se no umbral da porta com o cabo do machado e olhou para dentro.
Meia dúzia de pessoas o encaravam com olhos esgazeados.
— O senhor bateu? — disse um homem, fazendo os outros rirem histericamente.
Agarraram-no pelos braços e puxaram-no para dentro.
— Não vai precisar disto — disse alguém, arrancando a machadinha com facilidade das mãos de Sheerin. — Estas coisas podem machucar, sabia?
Mais risos. Empurraram-no para o centro da sala e fizeram um círculo à sua volta.
Havia sete, oito, talvez nove deles. Homens, mulheres e um adolescente. Sheerin pôde ver de um relance que não eram os legítimos donos da casa, que devia ter sido limpa e bem arrumada. Agora havia manchas na parede, metade dos móveis estava de pernas para o ar, havia uma poça de alguma coisa (vinho?) no tapete.
Sabia quem eram aquelas pessoas. Eram invasores, invasores sujos e maltrapilhos. Tinham chegado e ocupado a casa depois da fuga dos donos. Um dos homens estava usando apenas uma camisa. Uma das mulheres, pouco mais que uma menina, vestia apenas shorts. Tinham todos um cheiro acre, desagradável. Os olhos apresentavam a mesma expressão vaga, distante, que observara em milhares de pessoas nos últimos dias. Não era preciso ser um especialista para saber que estavam todos loucos.
Misturado ao fedor dos corpos dos invasores, porém, havia um outro cheiro, muito mais agradável, que quase fez Sheerin também perder o juízo: o cheiro de comida no fogo. Estavam preparando uma refeição na cozinha. Sopa? Ensopado? Alguma coisa estava fervendo lá dentro. A fome e a esperança súbita de saciá-la o fizeram cambalear.
— Não sabia que a casa estava ocupada — disse, com todo o tato. — Se me deixarem ficar esta noite, irei embora amanhã de manhã.
— Você é bombeiro? — perguntou, desconfiado, um homem barbudo, que parecia ser o líder.
— Bombeiro? Não, não sou bombeiro — respondeu Sheerin. — Meu nome é Sheerin 501, e trabalho na…
— Bombeiro! Bombeiro! Bombeiro! — começaram todos a gritar.
— …Universidade de Saro — concluiu o psicólogo. Foi como se tivesse dito uma palavra mágica. Eles pararam de gritar e ficaram olhando, assustados, para Sheerin.
— Está dizendo que trabalha na universidade? — perguntou o líder, afinal, em tom estranho.
— Isso mesmo. No departamento de psicologia. Dou aulas e também trabalho no hospital. Escute, não quero atrapalhar a vida de vocês. Só estou pedindo um lugar para descansar algumas horas e um pouco de comida, se não for fazer falta. Só um pouquinho. Não como desde…
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