— Tudo.
— Já não dá para ver que não tenho nenhum isqueiro?
— Restam apenas vinte segundos, professora.
Siferra amarrou a cara e tirou a roupa de baixo sem dizer mais nada.
Era surpreendentemente fácil, agora que tomara a decisão, ficar nua na frente daqueles estranhos. Ela não se importava. Isso era uma consequência interessante do fim do mundo, pensou. Ela não se importava. Ficou ali parada, em uma postura altiva, quase desafiadora, esperando para ver o que fariam em seguida. Os olhos de Altinol percorreram o seu corpo sem nenhuma pressa. Mesmo assim, Siferra não se importou. Uma espécie de indiferença dolorosa tomara conta do seu ser.
— Muito bonito, professora — disse Altinol, afinal.
— Obrigada. Posso me vestir agora? — perguntou Siferra, em tom gélido.
— Claro, claro — disse Altinol, com um gesto condescendente. — Desculpe o incômodo. É que não podemos correr nenhum risco. — Enfiou a pistola em uma faixa que trazia amarrada na cintura, cruzou os braços e ficou olhando a arqueóloga se vestir. — Deve estar achando que veio parar no meio de selvagens, não é, professora?
— Está mesmo interessado em saber o que eu penso?
— Deve ter reparado que nenhum de nós ficou babando ou sujou as calças enquanto você estava… hum… mostrando que não tinha nenhum isqueiro escondido. Além disso, ninguém tentou molestá-la.
— Fico grata por isso.
— Estou chamando sua atenção para essas coisas, embora tenha consciência de que não fazem muita diferença para você no momento, já que está zangada conosco, porque quero que saiba que somos talvez o último bastião de civilização neste planeta abandonado pelos deuses. Não sei onde foram parar nossos queridos governantes e certamente não considero os Apóstolos do Fogo como gente civilizada, e os seus amigos da universidade, que estavam escondidos aqui, arrumaram suas coisas e foram embora. Os outros, pelo que sei, estão completamente loucos. Isto é, exceto nós e você, professora.
— Está sendo gentil em me incluir.
— Estou sendo objetivo. Você parece ter resistido melhor à Escuridão e às Estrelas do que a maioria. O que quero saber é se está interessada em ficar e se juntar ao nosso grupo. Precisamos de pessoas como você.
— Para fazer o quê? Cozinhar? Esfregar o chão?
Altinol parecia imune ao sarcasmo.
— Para ajudar a manter viva a civilização, professora. Temos diante de nós uma missão sagrada. Dia após dia, estamos tentando administrar aquela casa de loucos lá fora, desarmando os irresponsáveis, impedindo que iniciem novos incêndios. Esta é a nossa missão, professora. Estamos tentando recuperar o controle do fogo. É o primeiro passo para fazer o mundo voltar à normalidade. Quer se juntar a nós, professora? Ou prefere tentar a sorte lá na floresta?
A manhã era fria e nevoenta. Grossos rolos de neblina pairavam sobre as ruas devastadas, uma neblina tão espessa que Sheerin não poderia dizer quais os sóis que estavam no céu. Um deles era Onos, certamente. Entretanto, sua luz dourada estava quase totalmente escondida pela névoa. E aquela claridade a sudoeste provavelmente indicava a presença de um dos pares de sóis gêmeos, mas era impossível dizer se tratava de Sitha e Tano ou de Patru e Trey.
O psicólogo estava muito cansado. Estava ficando cada vez mais óbvio que aquela ideia de transpor sozinho, a pé, as centenas de quilômetros que separavam a cidade de Saro do Parque Nacional de Aragando era uma fantasia impossível.
Maldito Theremon! Juntos, pelo menos, talvez tivessem uma chance. Mas o repórter se mantivera inabalável em sua decisão de procurar Siferra na floresta. Aquilo é que era fantasia!
Sheerin olhou para a frente, procurando enxergar através da neblina. Precisava de um lugar para descansar um pouco. Precisava encontrar alguma coisa para comer.
Gostaria de trocar de roupa, ou pelo menos tomar um banho. Nunca se sentira tão sujo em toda a sua vida. Ou tão faminto. Ou tão cansado. Ou tão desanimado.
Durante todo o longo episódio da chegada da Escuridão, desde o primeiro momento em que ouvira de Beenay e Athor que um acontecimento daqueles era provável, Sheerin havia oscilado entre as duas extremidades do espectro psicológico, passando do pessimismo para o otimismo e de volta para o pessimismo, da esperança para o desânimo e de volta para a esperança. A sua inteligência e experiência lhe diziam uma coisa, sua personalidade naturalmente flexível lhe dizia outra.
Talvez Beenay e Athor estejam enganados e o cataclismo astronômico não passe de uma especulação sem fundamento. Não, o cataclismo certamente vai acontecer.
A despeito de seus próprios distúrbios causados pela sua experiência com a Escuridão, no Túnel do Mistério, dois anos atrás, talvez os efeitos da Escuridão não sejam tão sérios assim.
Errado.
A Escuridão vai produzir uma loucura coletiva.
A loucura será apenas temporária, um breve período de desorientação.
A loucura será permanente, para a maioria das pessoas.
O mundo sofrerá um abalo temporário, mas logo as coisas voltarão ao normal. O mundo será destruído no caos produzido pelo eclipse. Para lá e para cá, para cima e para baixo. Dois Sheerin diferentes, envolvidos em uma disputa interminável.
Agora, porém, tinha chegado ao fundo do poço e parecia ter parado ali, sentindo-se cansado e deprimido. As coisas que vira nos últimos dias tinham feito seu otimismo desaparecer. Seriam necessárias várias décadas, talvez mais de um século, para que as coisas voltassem ao normal. As cicatrizes produzidas pelo trauma mental era muito fundas, o abalo sofrido pela estrutura social tinha sido muito violento. O mundo que ele havia amado fora tragado pela Escuridão e não havia retorno possível.
Aquela era a sua opinião profissional e não via razão para duvidar dela.
Aquele era o terceiro dia desde que Sheerin se separara de Theremon na floresta e iniciara, lepidamente, a jornada em direção a Aragando. Era difícil agora recapturar o clima jovial do início da viagem. Conseguira sair inteiro da floresta, embora para isso tivesse que exibir algumas vezes a machadinha, com ar ameaçador, um blefe completo de sua parte, mas que dera certo. Fazia mais ou menos um dia que estava atravessando os bairros elegantes ao sul da cidade.
Por ali, estava tudo queimado. Quarteirões inteiros tinham sido destruídos e abandonados. Muitos dos edifícios ainda estavam queimando.
A estrada principal que levava às províncias do sul começava a poucos quilômetros do parque. De carro, levaria alguns minutos para chegar lá. Acontece que não estava de carro. Depois de sair da floresta, tivera que subir a pé a colina de Ponto Onos, pelo meio do mato. Levara quase um dia inteiro para chegar ao cume.
Quando terminou a escalada, Sheerin constatou que a colina era mais um platô, que se estendia interminavelmente à sua frente. Por mais que andasse, não chegava à estrada. Seria aquela a direção certa?
Sim. Sim, de vez em quando via uma placa em uma esquina que dizia que aquele era o caminho para a Grande Estrada do Sul. Faltava muito para chegar? As placas não diziam. A cada dez ou doze quarteirões havia uma placa, e era tudo. Continuou a andar. Não tinha escolha.
Encontrar a estrada, porém, era apenas o primeiro passo para chegar a Aragando. Na prática, ainda estaria na cidade de Saro. Que fazer, então? Continuar a pé? E havia outra opção? Seria impossível pegar uma carona. Não havia nenhum veículo circulando. O estoque dos postos de gasolina que não tinham sido incendiados já devia ter se esgotado há muito tempo. Quanto tempo levaria para chegar a Aragando viajando a pé? Semanas? Meses? Não… levaria o resto da vida. Morreria de fome muito antes de completar a jornada.
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