Contivera-se imediatamente. Mas já tarde demais. Ficou apavorada com o seu envolvimento pessoal, com o egoísmo mesquinho que revelara a si mesma naquele momento de crise. Não importava que Drumlin tivesse tido fraquezas semelhantes. Sentia-se horrorizada por descobri-las, ainda que fugazes, dentro de si mesma — tão… veementemente, tão azafamadamente, planejando futuros cursos de ação, esquecida de tudo, exceto dela própria. O que mais detestou foi a ausência absoluta de generosidade do seu ego: não apresentava quaisquer justificações, não dava quartel, atirava-se de cabeça. Era imoral, doentio. Ela sabia que seria impossível arrancá-lo, raiz e ramo. Teria de trabalhar nele pacientemente, de discutir com ele chamando-o à razão, de desviar-lhe a atenção, talvez até mesmo de ameaçá-lo.
Quando os investigadores chegaram à cena do desastre, mostrou-se incomunicativa. «Lamento não poder dizer-lhes muito. Nós três caminhávamos juntos na área de montagem e, de súbito, houve uma explosão e foi tudo pelos ares. Sinto não poder ajudar. Gostaria de poder.»
Disse claramente aos seus colegas que não queria falar do assunto e refugiou-se no seu apartamento durante tanto tempo que eles mandaram um grupo de reconhecimento saber dela. Tentou recordar todos os cambiantes do incidente. Tentou reconstituir a sua conversa antes de entrarem na área de montagem, o que ela e Drumlin tinham dito durante a viagem de automóvel a Missoula, o que Drumlin lhe parecera quando o tinha conhecido no princípio da sua carreira de pós-graduação. Pouco a pouco descobriu que houvera uma parte dela que desejara a morte dele — antes mesmo de se tornarem competidores para o lugar americano na Máquina. Odiava-o por tê-la diminuído na presença dos outros estudantes; nas aulas, por se ter oposto ao Projeto Argus, pelo que lhe dissera no momento seguinte à reconstituição do filme de Hitler. Desejara-lhe a morte. E agora ele morrera. Obedecendo a um certo raciocínio — que reconheceu imediatamente como tortuoso —, considerava-se culpada.
Ele teria estado, sequer, ali, se não fosse ela. Com certeza que sim, respondeu a si mesma; qualquer outra pessoa teria descoberto a Mensagem e Drumlin ter-lhe-ia saltado para cima. Por assim dizer. Mas não o teria ela — porventura através da sua própria insensibilidade científica — instigado a envolver-se mais profundamente no Projeto da Máquina? Passo a passo, examinou as possibilidades. Se eram desagradáveis, aprofundava-as com particular insistência; escondia-se ali alguma coisa. Pensou em homens, homens que por qualquer razão admirara. Drumlin. Valerian. Der Heer. Joss. Jesse… Staughton?… O seu pai.
— Doutora Arroway?
Sentiu-se gratamente arrancada à sua meditação por uma mulher loura e robusta, de meia-idade e vestido azul estampado. O seu rosto pareceu-lhe de certo modo familiar. A tarjeta identificativa, de pano, no busto farto, dizia: H. Bork, Goteborg. H
— Doutora Arroway, lamento a sua… a sua perda. O David disse-me tudo a seu respeito.
Claro! A lendária Helga Bork, companheira de mergulho autônomo de Drumlin em tantas e tão enfadonhas sessões de exibição de slides para estudantes pós-graduados. Quem, perguntou a si própria pela primeira vez, tirara aquelas fotografias? Convidaria um fotógrafo para os acompanhar nos seus encontros subaquáticos?
— Ele disse-me quanto eram íntimos, os dois.
Que está esta mulher a tentar dizer-me? Ter-lhe-á o Drumlin insinuado… Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
— Desculpe, doutora Bork, neste momento não me sinto muito bem.
De cabeça baixa, a outra apressou-se a afastar-se.
Estavam no funeral muitos que ela desejava ver: Vaygay, Arkhangelsky, Gotsridze, Baruda, Yu, Xi, Devi… E Abonneba Eda, de quem se falava cada vez mais como do quinto membro da tripulação — se as nações tivessem uma ponta de bom senso, pensou Ellie, e se alguma vez houvesse uma coisa como uma Máquina completada. Mas a sua histamina social estava estourada e naquele momento ela não poderia suportar encontros demorados. Por um lado, receava o que fosse capaz de dizer. Quanto do que dissesse seria para bem do projeto e quanto para satisfazer as suas próprias necessidades? Os outros mostraram-se compassivos e compreensivos. No fim de contas, ela fora a pessoa que se encontrava mais perto de Drumlin quando o tubo de érbio o atingira e fizera em polpa.
CAPÍTULO XVI
Os anciãos do ozônio
O deus que a ciência reconhece deve ser um deus exclusivamente de leis universais, um deus de negócio grossista, e não retalhista. Não pode conciliar os seus processos com a conveniência dos indivíduos.
WILLIAM JAMES. The Varieties of Religious Experience (1902)
A poucas centenas de quilômetros de altitude, a Terra enche metade do nosso céu e a faixa de azul que se estende de Mindanau a Bombaim, e que os nossos olhos abarcam num único relance, é capaz de nos despedaçar o coração, de tão bela. A nossa Terra, pensamos. Aquele é o meu mundo. Foi dali que vim. Toda a gente que conheço, toda a gente de quem alguma vez ouvi falar, cresceu ali em baixo, debaixo daquele azul implacável e extraordinário.
Corremos para leste de horizonte a horizonte, de alvorecer a alvorecer, dando a volta ao planeta em hora e meia. Passado pouco tempo ficamos a conhecê-lo, examinamos as suas idiossincrasias e anomalias. Conseguimos ver tanto a olho nu! A Florida estará em breve de novo à vista. Aquele sistema de tempestade tropical que vimos na última órbita, a rodopiar e a correr sobre as Caraíbas, terá chegado a Fort Lauderdale? Estarão libertas de neve, este Verão, algumas das montanhas do Hindu Kush? Temos tendência para admirar os recifes cor de água-marinha do mar de Coral. Olhamos para o banco de gelo do Antártico ocidental e perguntamo-nos se o seu colapso inundaria realmente todas as cidades costeiras do planeta.
À luz do dia, porém, é difícil ver qualquer sinal de habitação humana. Mas à noite, tirando a aurora polar, tudo quanto vemos é devido a humanos, ao fervilhar e tremeluzir a toda a volta do planeta. Aquela faixa de luz é a parte oriental da América do Norte, contínua de Boston a Washington, uma megalópoles de fato, se não de nome. Além arde o gás natural da Líbia. As luzes ofuscantes da frota japonesa de pesca do camarão movimentaram-se na direção do mar da China Meridional. Em cada órbita a Terra conta-nos novas estórias. Podemos ver uma erupção vulcânica na Kamchatka, uma tempestade de areia sariana a aproximar-se do Brasil, tempo gélido extemporâneo na Nova Zelândia.
Começamos a pensar na Terra como um organismo, uma coisa viva. Começamos a preocupar-nos com ela, a interessar-nos por ela, a desejar-lhe bem. As fronteiras nacionais são tão invisíveis como meridianos de longitude, ou os trópicos de Câncer e Capricórnio. As fronteiras são arbitrárias. O planeta é real.
O vôo espacial, conseqüentemente, é subversivo. Se tem a sorte suficiente de se encontrar em órbita terrestre, a maioria das pessoas, após um pouco de meditação, tem pensamentos similares. As nações que tinham instituído o vôo espacial haviam-no feito largamente por razões nacionalistas; constituía uma pequena ironia o fato de quase todos quantos penetravam no espaço terem o espantoso vislumbre de uma perspectiva transnacional, da Terra como um mundo.
Não era difícil imaginar um tempo em que a lealdade predominante seria para com esse mundo azul, ou mesmo para com um aglomerado de mundos aninhados à volta da estrela anã amarela próxima, à qual os humanos, outrora ignorantes de que toda a estrela é um sol, tinham aposto o artigo definido; o Sol. Somente agora, quando muitas pessoas entravam no espaço por longos períodos e lhes era concedido um pouco de tempo para reflexão, somente agora o poder da perspectiva planetária começava a sentir-se. Um número significativo desses ocupantes da órbita terrestre baixa eram, como viera a descobrir-se, influentes lá em baixo, na Terra.
Читать дальше