Nesse ânimo de súbita exaltação, ele se lançou ao pedido que havia originalmente planejado apresentar somente após uma espera discreta de quatro ou cinco dias.
— É minha intenção solicitar permissão para formar uma ligação com uma pessoa Tempista — disse ele.
Finge pareceu ter sido tirado de um devaneio. — com Noys Lambent, presumo.
— Sim, senhor. Como Computador encarregado do Setor, a solicitação terá de passar por você…
Harlan queria que ela passasse por Finge. Fazê-lo sofrer. Se ele queria a garota para si, deixassem-no dizê-lo e Harlan poderia insistir em permitir que Noys fizesse sua escolha. Ele quase sorriu por isso. Esperava que as coisas chegassem a esse ponto. Seria o triunfo final.
Comumente, é claro, um Técnico não podia esperar levar tal coisa a cabo diante dos desejos de um Computador, mas Harlan estava certo de que poderia contar com o apoio de Twissell, e Finge tinha um longo caminho a seguir, antes que pudesse sobrepujar Twissell.
Finge, entretanto, parecia tranqüilo. — Pareceria — disse ele — que você já tomou posse ilegal da garota.
Harlan enrubesceu e foi movido a uma fraca defesa. — O mapa espaço-temporal insistiu em nossa permanência junto e a sós. Desde que nada do que aconteceu fosse especificamente proibido, não me sinto culpado.
O que era uma mentira, e pela expressão meio admirada de Finge, podia sentir-se que ele sabia que era mentira.
— Haverá uma Mudança de Realidade — disse ele.
— Se assim for — disse Harlan — emendarei minha solicitação para pedir ligação com a Srta. Lambent na nova Realidade.
— Não creio que isso seria sensato. Como pode estar certo com antecedência? Na nova Realidade, ela pode ser casada, pode ser deformada. De fato, posso dizer-lhe isto. Na nova Realidade, ela não quererá você. Ela não quererá você.
Harlan estremeceu. — Você nada sabe a respeito.
— Oh? Pensa que esse grande amor de vocês é uma questão de contato espiritual? Que sobreviverá a todas as mudanças externas? Esteve lendo romances fora do Tempo?
Harlan foi impelido à indiscrição. — Por uma coisa, não creio em você.
— Como? — disse Finge friamente.
— Você está mentindo — Harlan não se importava com o que dizia agora. — Você está com ciúme. Eis toda a verdade. Você está com ciúme. Você tinha seus próprios planos para Noys, mas ela me escolheu.
Finge disse: — Você compreende…
— Eu compreendo um bom bocado. Não sou idiota. Posso não ser um Computador, mas também não sou estúpido.
Você diz que ela não me quererá na nova Realidade. Como sabe? Você ainda nem sabe o que será a nova Realidade. Nem sabe se deve haver uma nova Realidade. Você apenas recebeu meu relatório. Ele deve ser analisado, antes que uma Mudança de Realidade possa ser computada, além de submetida a aprovação. Portanto, quando finge conhecer a natureza da Mudança, você mente.
Havia uma porção de maneiras pelas quais Finge poderia ter formulado resposta. A mente excitada de Harlan estava consciente de muitas. Ele não tentou escolher entre elas. Finge poderia sair com cólera fingida; poderia chamar um membro da Segurança e fazer com que colocassem Harlan sob custódia, por insubordinação; poderia responder, gritando tão furiosamente quanto Harlan; poderia fazer uma chamada imediata para Twissell, apresentando uma queixa formal; poderia… poderia…
Finge não fez nada disso.
— Sente-se, Harlan — disse ele gentilmente. — Conversemos sobre isso.
E porque esta reação era completamente inesperada, o queixo de Harlan caiu e ele se sentou, em confusão. Sua resolução vacilou. O que era isso?
— Você se lembra, naturalmente — disse Finge — de que eu lhe disse que o nosso problema com o século 482 envolvia uma atitude indesejável por parte dos Tempistas da Realidade corrente, em relação à Eternidade. Você se lembra disso, não é?
Ele falou com a branda persuasão de um professor que se dirige a um aluno um pouco tímido, embora Harlan pensasse poder detectar uma espécie de brilho duro em seu olhar.
— Naturalmente — respondeu Harlan.
— Você se lembra, também, de que eu lhe disse que o Conselho Geral estava relutante quanto a aceitar minha análise da situação sem Observações confirmadoras e específicas. Isso não o faz concluir que eu já Computei a Mudança de Realidade necessária?
— Mas minhas próprias Observações representam a confirmação, não é?
— Representam.
— E levaria tempo para analisá-las adequadamente.
— Absurdo. Seu relatório nada significa. A confirmação está no que você me disse oralmente, momentos atrás.
— Não o entendo.
— Olhe, Harlan, deixe-me contar-lhe o que há de errado com o século 482. Entre as classes superiores desse século, particularmente entre as mulheres, tem-se desenvolvido a opinião de que os Eternos são realmente Eternos, literalmente falando; de que eles vivem para sempre… Grande Tempo, homem, Noys Lambent disse-lhe outro tanto. Você repetiu suas afirmações há menos de vinte minutos.
Harlan fitou Finge inexpressivamente. Estava se lembrando da voz suave e carinhosa de Noys, quando se inclinara para ele e cativara seus olhos com seu próprio olhar escuro e amoroso: “Você vive para sempre. Você é um Eterno.”
Finge continuou. — Agora, uma opinião como essa é ruim, mas, em si, não muito ruim. Pode levar a inconveniências, aumentar as dificuldades para o Setor, mas a Computação mostrou que a Mudança só seria necessária em uma minoria dos casos. Contudo, se uma Mudança é desejável, não lhe parece óbvio que os habitantes do século que devem sofrer extremamente a Mudança, acima de todos, sejam aqueles que estão sujeitos à superstição? Em outras palavras, a aristocracia feminina. Noys.
— Pode ser, mas arriscarei a sorte — disse Harlan.
— Você não tem chance alguma. Acha que seu fascínio e charme persuadiram a meiga aristocrata a cair nos braços de um Técnico insignificante? Vamos, Harlan, seja realista quanto a isso.
Os lábios de Harlan tornaram-se inflexíveis. Ele nada disse.
— Você não é capaz de imaginar — disse Finge — a superstição adicional que estas pessoas acrescentaram à sua fé na verdadeira vida eterna dos Eternos? Grande Tempo, Harlan! A maioria das mulheres acreditam que a intimidade com um Eterno pode fazer com que uma mulher mortal (segundo elas pensam de si mesmas) a viver para sempre!
Harlan agitou-se. Podia ouvir novamente a voz de Noys, tão claramente: “Se me tornassem Eterna…” E depois seus beijos.
Finge continuou. — Era difícil de se acreditar na existência de tal superstição, Harlan. Ela era sem precedente. Ela estava dentro da região de erro casual, de maneira que uma busca através das Computações para as Mudanças anteriores não revelou informações a respeito dela, de uma forma ou de outra. O Conselho Geral queria evidência firme, comprovação direta. Escolhi a Srta. Lambent como um bom exemplo de sua classe. Escolhi você para ser a outra cobaia…
Harlan levantou-se com esforço. — Você escolheu a mim? Como cobaia?
— Sinto muito — disse Finge duramente — mas foi necessário. Você dava uma ótima cobaia.
Harlan fitou-o.
Finge teve a dignidade de se aborrecer um pouco sob aquele olhar mudo. — Você não vê? — disse ele. — Não, você ainda não vê. Olhe, Harlan, você é um produto insensível da Eternidade. Você não deve olhar para mulheres. Você considera as mulheres imorais e tudo quanto a elas se relaciona. Não, há uma palavra melhor. Você as considera pecaminosas. Essa atitude mostra tudo de você, e você teria de sentir por qualquer mulher toda a atração sexual de um peixe morto há um mês. Contudo, aqui temos uma mulher, um lindo produto amimalhado de uma cultura hedonista, que o seduz ardentemente em sua primeira noite juntos, virtualmente suplicando o seu abraço. Você não entende que isso é ridículo, impossível, a menos… bem, a menos que isso seja a confirmação pela qual estávamos procurando.
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