Glosa
Indaqu'em vós a arte vença
O que o natural tẽe dado,
Não fostes bem retratado;
Que ha em vós mais differença,
Que no vivo do pintado.
Se o lugar se considera
Do alto estado, que vos deu
A sorte, qu'eu mais quizera;
Se he qu'eu sou quem d'antes era,
Retrato, vós não sois meu.
Vós na vossa glória pôsto,
Eu na minha sepultura,
Vós com bens, eu com desgôsto;
Pareceis-vos ao meu rosto,
E não ja á minha ventura.
E pois nella e vós errarão
O qu'em mi he principal,
Muito em ambos s'enganárão.
Se por mi vós retratárão,
Retratárão-vos mui mal.
Mas se esse rosto fingido
Quizerão representar,
E houverão por bom partido
Dar-vos a alma do sentido
Para a glória do lugar;
Víreis, pôsto nessa alteza,
Que vos não ha cousa igual;
E que nem a maior mal
Podeis vir, nem mor baixeza,
Que a serdes meu natural.
Por isso não confesseis
Serdes meu, qu'he desatino,
Com que o lugar perdereis:
Se conservar-vos quereis,
Blazonae que sois divino.
Que se nesta occasião
Conhecessem qu'ereis meu,
Por meu vos derão de mão,
– oOo —
MOTE
Foi-se gastando a esperança,
Fui entendendo os enganos;
Do mal ficárão-me os danos,
E do bem só a lembrança.
Glosa
Nunca em prazeres passados
Tive firmeza segura.
Antes tão arrebatados,
Qu'inda não erão chegados,
Quando mos levou ventura.
E como quem desconfia
Ter em tal sorte mudança,
No meio desta porfia,
De quanto bem pretendia
Foi-se gastando a esperança.
Não tive por desatino
A occasião de perdella;
Mas foi culpa do destino,
Que a ninguem, como mais dino,
Amor pudéra sostella.
Dei-lhe tudo o qu'era seu,
Não receando taes danos
Deste, a quem alma lhe deu:
Quando ja não era meu,
Fui entendendo os enganos.
Fiquei deste mal sobejo
A quem a causa compete
Dizer-lhe tudo o que vejo,
Que Amor acceita o desejo,
Mas mente no que promete.
Que se a mi se me obrigou
A dar-me bens soberanos,
Foi engano que ordenou;
Que do bem tudo levou,
Do mal ficárão-me os danos.
E se dor tão desigual
Soffro em mi com padecellos,
Quero de novo soffrellos;
Que por a causa ser tal,
Não determino offendellos.
Dobre-se o mal, falte a vida,
Cresça a fé, falte a esperança,
Pois foi mal agradecida;
Fique a dor n'alma imprimida,
E do bem só a lembrança.
– oOo —
ENDECHAS A BARBARA ESCRAVA
Aquella captiva,
Que me tẽe captivo,
Porque nella vivo,
Ja não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves mólhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.
Nem no campo flores,
Nem no ceo estrellas,
Me parecem bellas,
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos socegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Huma graça viva,
Que nelles lhe mora,
Para ser senhora
De quem he captiva.
Pretos os cabellos,
Onde o povo vão
Perde opinião,
Que os louros são bellos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocára a cór.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha,
Bem parece estranha,
Mas barbara não.
Presença serena,
Que a tormenta amansa:
Nella emfim descansa
Toda minha pena.
Esta he a captiva,
Que me tẽe captivo;
E pois nella vivo,
He fôrça que viva.
– oOo —
MOTE
Quem ora soubesse
Onde o Amor nasce,
Que o semeasse!
Voltas
D'Amor e seus danos
Me fiz lavrador;
Semeava amor,
E colhia enganos;
Não vi, em meus anos,
Homem que apanhasse
O que semeasse.
Vi terra florída
De lindos abrolhos,
Lindos para os olhos,
Duros para a vida.
Mas a rez perdida,
Que tal herva pasce,
Em forte hora nasce.
Com quanto perdi,
Trabalhava em vão:
Se semeei grão,
Grande dor colhi.
Amor nunca vi
Que muito durasse,
Que não magoasse.
– oOo —
ALHEIO
Se me levão ágoas,
Nos olhos as levo.
Voltas
Se de saudade
Morrerei ou não,
Meus olhos dirão
De mi a verdade.
Por elles me atrevo
A lançar as ágoas,
Que mostrem as mágoas
Que nesta alma levo.
As ágoas, qu'em vão
Me fazem chorar,
Se ellas são do mar,
Estas de amar são.
Por ellas relévo
Todas minhas mágoas;
Que se fôrça d'ágoas
Me leva, eu as levo.
Todas me entristecem,
Todas são salgadas;
Porém as choradas
Doces me parecem.
Correi, doces ágoas,
Que se em vós m'enlévo,
Não doem as mágoas,
Que no peito levo.
– oOo —
ALHEIO
Menina dos olhos verdes,
Porque me não vedes?
Voltas
Elles verdes são,
E tẽe por usança
Na côr esperança,
E nas obras não.
Vossa condição
Não he d'olhos verdes,
Porque me não vêdes.
Isenções a mólhos
Qu'elles dizem terdes,
Não são d'olhos verdes,
Nem de verdes olhos.
Sirvo de giolhos,
E vós não me credes,
Porque me não vêdes.
Havião de ser,
Porque possa vê-los,
Que huns olhos tão bellos
Não se hão d'esconder:
Mas fazeis-me crer,
Que ja não são verdes,
Porque me não vêdes.
Verdes não o são,
No que alcanço delles;
Verdes são aquelles
Qu'esperança dão.
Se na condição
Está serem verdes,
Porque me não vedes?
– oOo —
ALHEIO
Trocae o cuidado,
Senhora, comigo;
Vereis o perigo,
Qu'he ser desamado.
Voltas
Se trocar desejo
O amor entre nós,
He para qu'em vós
Vejais o que vejo.
E sendo trocado
Este amor comigo,
Ser-vos-ha castigo
Terdes meu cuidado.
Tendes o sentido
D'Amor livre e isento,
E cuidais qu'he vento
Ser tão mal querido.
Não seja o cuidado
Tão vosso inimigo,
Que queira o perigo
De ser desamado.
Mas nunca foi tal
Este meu querer,
Que a quem tanto quer,
Queira tanto mal
Seja eu maltratado,
E nunca o castigo
Vos mostre o perigo,
Qu'he ser desamado.
– oOo —
Á TENÇÃO DE MIRAGUARDA
Ver, e mais guardar
De ver outro dia,
Quem o acabaria?
Voltas
Da lindeza vossa,
Dama, quem a vê,
Impossivel he
Que guardar-se possa.
Se faz tanta mossa
Ver-vos hum só dia,
Quem se guardaria?
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