– Não tem importância, doutor. Foi a senhora ali quem começou, ela se enganou. Já conheci gente que era dada a isso. Eu tinha um tio que se chamava Hallahan, e numa ocasião ele andou com uma dona que ficava dando uma de que não conseguia lembrar-se do nome dele direito, e o ficava chamando de Hooligan só para chatear. Isso durou meses, antes que ele a fizesse parar. Também a fez parar de uma vez.
– Ah? Como foi que ele a fez parar? – perguntou o médico.
McMurphy sorriu e esfregou o nariz com o polegar.
– Ah, ah, agora isso eu não posso contar. Mantenho o método do tio Hallahan em segredo absoluto, o senhor sabe, para o caso de eu mesmo precisar utilizá-lo um dia. Disse isso direto para a enfermeira. Ela sorri de volta e ele olha para o médico.
– Agora, o que era que o senhor estava perguntando a respeito do meu dossiê, doutor?
– Sim. Eu estava querendo saber se o senhor teve alguma experiência psiquiátrica anterior. Análise, algum tempo passado numa outra instituição qualquer?
– Bem, contando prisões estaduais e municipais…
– Instituições psiquiátricas.
– Ah. Não, se o caso é esse. Esta é a minha primeira viagem. Mas eu sou louco, doutor. Juro que sou. Bem aqui… deixa que lhe mostre, aqui. Acho que aquele outro médico na colônia penal…
Ele se levanta, enfia o baralho no bolso da jaqueta e atravessa a sala para se inclinar por sobre o ombro do médico e folhear a pasta no seu colo. – Acho que ele escreveu alguma coisa aqui atrás em algum lugar…
– Sim? Eu deixei passar. Só um momento. – O médico torna a puxar os óculos, coloca-os e olha para onde McMurphy está apontando.
– Bem aqui, doutor. A enfermeira deixou essa parte de fora quando estava resumindo meu dossiê. Onde diz "O Sr. McMurphy demonstrou repetidamente…" Só quero ter certeza de que sou totalmente compreendido, doutor. "Repetidamente transportes emocionais exagerados que sugerem o possível diagnóstico de psicopata". Ele me disse que psicopata quer dizer que eu brigo e fo…, perdão, senhoras, quero dizer que eu sou, conforme ele diz, excessivamente zeloso em minhas relações sexuais. Doutor, isto é realmente sério?
Ele perguntou isso com uma tal expressão infantil de preocupação e interesse, espelhada por todo o seu rosto grande e rude, que o médico não conseguiu impedir-se de inclinar a cabeça e esconder um outro risinho silencioso no colarinho, e os óculos caíram-lhe do nariz certinho bem no meio do bolso. Agora, todos os Agudos estão sorrindo também, e até alguns dos Crônicos.
– Eu quero dizer esse excesso de zelo, doutor, o senhor alguma vez já teve algum problema com isso?
O médico esfrega os olhos.
– Não, Sr. McMurphy, devo admitir que não. Entretanto, estou interessado no fato de que o médico da colônia penal tenha acrescentado esta declaração: "Não afastar a possibilidade de que este homem pode estar simulando uma psicose para fugir ao trabalho penoso da colônia penal." – Ele ergueu o olhar para McMurphy. – E o que é que o senhor diz isso?
– Doutor – ele se levanta, alto e ereto, franze a testa e abre os braços, estendidos com franqueza e honestidade para o mundo inteiro. – Eu pareço ser um homem são?
O médico está, outra vez, fazendo tanta força para não rir que não consegue responder. McMurphy gira, afastando-se do médico, e faz a mesma pergunta à Chefona:
– Pareço?
Em vez de responder ela se levanta, toma a pasta de papel pardo do médico e torna a colocá-la de volta na cesta sob sua guarda. Em seguida, se senta.
– Talvez, doutor, o senhor devesse esclarecer o Sr. McMurry a respeito do protocolo destas Sessões de Grupo.
– Dona – diz McMurphy -, eu já lhe falei a respeito do meu tio Hallahan e da mulher que costumava fazer confusão com o nome dele?
Ela olha para ele durante muito tempo sem o seu sorriso característico. Tem a habilidade de transformar aquele sorriso em qualquer expressão que deseja utilizar sobre alguém, mas a aparência que ela lhe dá nada tem de diferente, é apenas uma expressão calculada e mecânica para servir aos seus propósitos. Finalmente diz:
– Desculpe-me Mack-Murph-y. – Vira-se novamente para o médico. – Agora, doutor, se quiser explicar…
O médico cruza as mãos e se recosta.
– Sim. Creio que o que devo fazer é explicar a teoria toda da nossa Comunidade Terapêutica, uma vez que estamos aqui. Embora eu normalmente deixe isso para mais tarde. Uma boa idéia, Srta. Ratched, ótima idéia.
– Certamente que a teoria também, doutor, mas o que eu tinha em mente era a regra de que os pacientes têm de permanecer sentados durante o curso da sessão.
– Sim. É claro. Depois explicarei a teoria. Sr. McMurphy, uma das primeiras coisas é que os pacientes permaneçam sentados durante a sessão. É a única forma, sabe, de mantermos a ordem.
– Claro, doutor. Eu só me levantei para lhe mostrar uma coisa no meu dossiê.
Ele vai até a sua cadeira, torna a se espreguiçar longamente, dá um grande bocejo e se remexe um pouco, como um cachorro se ajeitando para descansar. Quando se sente confortável, olha para o médico, esperando.
– Quanto à teoria … – O médico inspira profundamente, satisfeito.
– Ffffoda a mulher – diz Ruckly. McMurphy esconde a boca atrás das costas da mão e atira para o outro lado da sala, para Ruckly, num sussurro áspero:
– Mulher de quem?
A cabeça de Martini se levanta num salto, os olhos arregalados e fixos.
– É – diz ele. – Mulher de quem? Oh, ela? Sim, eu a vejo. Ééé.
– Eu daria um bocado para ter os olhos desse homem – diz McMurphy a respeito de Martini e depois nada mais diz durante o resto da sessão. Apenas fica sentado ali, observa e nada perde do que acontece, nem uma palavra que é dita. O médico fala sobre a sua teoria até que a Chefona finalmente decide que ele já gastou tempo suficiente e lhe pede que se cale para que possam continuar com o problema de Harding, e falam durante todo o resto da sessão a esse respeito.
McMurphy se inclina para frente na cadeira umas duas vezes durante a sessão, como se tivesse alguma coisa a dizer, mas pensa melhor e torna a se recostar. Há uma expressão de perplexidade em seu rosto. Alguma coisa estranha está acontecendo ali, está descobrindo. Não consegue dizer exatamente o que é. Como, por exemplo, a maneira como ninguém ri. Ora, ele achou que haveria com certeza uma risada geral quando perguntou a Ruckly: "Mulher de quem?" Mas não houve nem sinal de uma. O ar está comprimido para dentro das paredes, comprimido demais para se rir. Há alguma coisa estranha a respeito de um lugar onde os homens não se permitem descontrair-se e rir, alguma coisa estranha na maneira como todos se submetem àquela matrona velha, sorridente, de rosto cor de farinha, com o batom vermelho demais e os peitos exageradamente grandes. E ele pensa que vai só esperar um pouco para ver qual é a história nesse lugar novo, antes de fazer qualquer espécie de jogada. Esta é uma boa regra para um jogador: observar o jogo durante algum tempo antes de pegar uma mão.
Já ouvi aquela teoria da Comunidade Terapêutica um número suficiente de vezes para repeti-las de trás para frente e da frente para trás – como alguém tem de aprender a sair-se bem num grupo antes de estar apto a funcionar numa sociedade normal; como o grupo pode ajudar alguém, mostrando-lhe onde é que ele está fora do lugar; como é a sociedade que decide quem é são e quem não o é, assim, é preciso estar à altura. Todo esse negócio. Toda vez que recebemos um novo paciente na enfermaria, o médico mergulha na teoria com os dois pés; é praticamente a única ocasião em que ele assume o comando das coisas e dirige a sessão. Ele diz como o objetivo da Comunidade Terapêutica é uma enfermaria democrática, completamente dirigida pelos pacientes e pelos seus votos, trabalhando com o objetivo de fazer cidadãos válidos para voltarem para o Lado de Fora, para a rua. Qualquer problema, qualquer aborrecimento, qualquer coisa que você queira que se modifique, diz ele, deverá ser apresentada e exposta ao grupo e discutida, em vez de deixar que lhe envenene o espírito. Você também deverá sentir-se à vontade no seu ambiente a ponto de poder discutir livremente problemas emocionais diante dos pacientes e do pessoal. Converse, diz ele, discuta, confesse. E, se ouvir um amigo dizer alguma coisa durante a conversa cotidiana, então registre no diário, para que o pessoal veja. Isto não é, como o cinema diz, "alcagoetar", é ajudar o companheiro. Traga esses velhos pecados à tona, onde eles podem ser apagados ficando à vista de todos. E participe da Discussão do Grupo. Ajude a si mesmo e aos seus amigos a vasculhar os segredos do subconsciente. Não deve haver necessidade de segredos entre amigos.
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