Nossa intenção, ele normalmente chega ao fim dizendo isso, é fazer daqui um lugar tão parecido quanto possível com as suas comunidades de origem, livres e democráticas – um pequeno mundo do Lado de Dentro que é um protótipo em escala menor do grande mundo do Lado de Fora, onde um dia você ocupará novamente seu lugar.
Talvez ele tenha mais coisas a dizer, mas, quando atinge esse ponto, a Chefona geralmente o faz calar, e na calmaria o velho Pete se levanta e sacode aquela cabeça que parece uma panela de cobre amassada e diz a todo mundo como ele está cansado, e a enfermeira diz a alguém que vá fazê-lo calar a boca também, de forma que a sessão possa continuar, e geralmente Pete fica calado e a sessão continua.
Uma vez, só uma vez que eu me lembre, há uns quatro ou cinco anos, foi um pouco diferente. O médico acabara de dizer a sua arenga e a enfermeira tinha começado direto com: "Bem. Quem vai começar? Vamos deixar sair esses velhos segredos." E ela havia posto os Agudos em transe, ficando sentada ali em silêncio durante 20 minutos depois da pergunta, silenciosa como um despertador prestes a tocar, esperando que alguém começasse a contar alguma coisa a respeito de si mesmo. Os olhos dela corriam sobre eles de um lado para o outro, firmes como raios de luz girando num farol. A enfermaria ficou fechada em absoluto silêncio durante 20 longos minutos, com todos os pacientes atordoados nos lugares em que estavam. Depois que se haviam passado 20 minutos, ela olhou para o relógio e disse: "Devo concluir que não há um único homem entre vocês que tenha praticado algum ato que nunca admitiu?" Remexeu a cesta para apanhar o livro de anotações. "Será que vamos ter de rever história antiga?"
Aquilo disparou alguma coisa, alguma engenhosa acústica nas paredes, preparadas para entrar em funcionamento apenas diante do som daquelas palavras, saídas de sua boca. Os Agudos se enrijeceram. Suas bocas se abriram em uníssono. Os olhos dela, que corriam, se detiveram no primeiro homem ao longo da parede.
A boca se moveu. "Eu assaltei a caixa registradora de um posto de gasolina."
Ela passou para o homem seguinte.
"Eu tentei levar minha irmã mais moça para a cama."
Os olhos dela passaram para o homem seguinte; cada um saltou como um alvo de uma galeria de tiro.
"Eu… uma vez… queria levar meu irmão para a cama."
"Eu matei minha gata quando tinha seis anos. Oh, Deus me perdoe, eu a apedrejei até a morte e disse que o vizinho é que tinha feito isso."
"Eu menti quando disse que tinha tentado. Realmente trepei com minha irmã!"
"Eu também! Eu também!"
"E eu! E eu!"
Fora melhor do que ela havia sonhado. Estavam todos gritando para se superarem uns aos outros, indo adiante e mais adiante, sem jeito de parar, dizendo coisas que nunca mais lhes permitiriam se olharem de frente outra vez. A enfermeira assentindo a cada confissão e repetindo sim, sim, sim.
Então o velho Pete ficou de pé. "Estou cansado!", foi o que ele gritou, com um tom forte, zangado e metálico na voz que ninguém jamais ouvira antes.
Todo mundo se calou. Estavam como que envergonhados. Era como se, de repente, ele tivesse dito alguma coisa que era real e verdadeira e importante e aquilo tivesse coberto de vergonha toda aquela gritaria infantil. A Chefona ficou furiosa. Virou-se e o olhou com ódio, o sorriso escorrendo-lhe por sobre o queixo; ela havia conseguido que tudo estivesse tão bem.
"Alguém, por favor, vá atender ao pobre Sr. Bancini", dissera ela.
Dois ou três se levantaram. Tentaram acalmá-lo, deram-lhe palmadinhas no ombro. Mas Pete não ia deixar que o calassem. "Cansado! Cansado!", continuou.
Finalmente a enfermeira mandou um dos crioulos levá-lo para fora da enfermaria à força. Ela se esqueceu de que os crioulos não tinham nenhum controle sobre pessoas como Pete.
Pete foi um Crônico a vida inteira. Embora não tenha vindo para o hospital senão com mais de 50 anos, sempre fora um Crônico. A cabeça dele tem duas grandes mossas, uma de cada lado, onde o médico que assistia sua mãe na hora do parto lhe apertou o crânio, tentando puxá-lo para fora. Pete havia olhado para fora, primeiro, e visto toda a aparelhagem da sala de parto a sua espera e de alguma forma se dera conta da coisa para onde estava nascendo, e se agarrara a tudo que estava a seu alcance ali dentro para tentar impedir-se de nascer. O médico tateou lá dentro e o apanhou pela cabeça com um par de tenazes cegas e o puxou com um arranco, e concluiu que estava tudo bem. Mas a cabeça de Pete ainda era nova demais, ainda macia como gesso, e, quando endureceu, aquelas duas mossas deixadas pelas tenazes permaneceram. E aquilo fez com que ele fosse simples a ponto de precisar de todos os seus mais valentes esforços, concentração e força de vontade, para executar apenas as tarefas que eram fáceis para uma criança de seis anos.
Mas uma coisa boa – o fato de ser simples assim – o colocou fora do alcance das garras da Liga. Não foram capazes de transformá-lo numa ferida. Assim o deixaram arranjar um emprego simples numa ferrovia, onde tudo que tinha de fazer era sentar-se numa casinha de madeira bem longe, lá no interior, num desvio solitário, e balançar uma lanterna vermelha para os trens, se o desvio fosse para uma mão, e uma verde, se fosse para a outra, e uma amarela, se houvesse um trem em algum lugar mais adiante. E ele o fez, com a força condutora e a garra que eles não conseguiram espremer para fora de sua cabeça, sozinho naquele desvio. E nunca nenhum controle foi instalado.
É por isso que os crioulos não tinham nenhuma autoridade sobre ele. Mas o crioulo não pensou naquilo naquele momento, da mesma forma que a enfermeira não pensou quando mandou que Pete fosse levado para fora da enfermaria. O crioulo aproximou-se depressa e deu um puxão no braço de Pete na direção da porta, exatamente como a gente puxa as rédeas de um cavalo para virá-lo.
– É isso mesmo, Pete. Vam'bora pro dormitório. Você tá incomodando todo mundo.
Pete sacudiu o braço, soltando-se.
– Estou cansado - advertiu.
– Vam'bora, velho 'cê tá criando caso. Vamos lá, deitar na cama e ficar quieto como um garoto bem comportado.
– Cansado…
– Eu disse que você vai pro dormitório, velho!
O crioulo tornou a lhe dar um puxão no braço, e Pete parou de balançar a cabeça. Enrijeceu-se, endireitou o corpo e ficou firme, e seus olhos se desanuviaram de repente. Normalmente, os olhos de Pete estão semicerrados e embaciados, como se houvesse leite neles, mas daquela vez eles se abriram claros como néon azul. E a mão naquele braço que o crioulo estava segurando começou a inchar. Os funcionários e a maioria do resto dos pacientes estavam falando entre si, sem prestar atenção àquele velho e a sua velha história de que estava cansado, imaginando que ele seria acalmado como de hábito e que a sessão continuaria. Eles não viram a mão na extremidade daquele braço ir latejando e ficando cada vez maior, à medida que ele a abria e fechava. Eu fui o único que viu. Eu a vi inchar-se e se fechar apertado, flutuar diante dos meus olhos, tornar-se lisa – dura. Uma grande bola de ferro enferrujado na ponta de uma corrente. Olhei fixo para ela e esperei, enquanto o crioulo dava um outro puxão no braço de Pete em direção ao dormitório.
– Velho, eu disse que 'cê tem…
Ele viu a mão. Tentou recuar e escapar dela, dizendo "você é um bom garoto, Peter", mas era um pouco tarde demais. Pete balançava a bola tomando impulso desde o joelho. O crioulo foi achatado contra a parede e ficou pregado ali um instante, depois deslizou até o chão como se a parede ali estivesse escorregadia. Ouvi canos estourarem e curtos-circuitos por toda parte dentro da parede, e o estuque se partiu exatamente no formato em que ele bateu.
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