Mas nem tudo era animosidade. Em 1816 o fiscal do Peru, em comunicação à Corte de Madri, apregoava possíveis vantagens que a abertura dos portos do Brasil ao comércio mundial, estabelecida em 1808, poderia trazer para a monarquia espanhola, como um maior desenvolvimento econômico de regiões como Maynas59. Na análise de Carlos Augusto Bastos, a postura otimista do funcionário real expressaria que «de modo claro, a experiência luso-americana sinalizava as possibilidades para as fronteiras da América espanhola, e particularmente para Maynas»; no entanto, a mesma postura não ignorava os riscos daí decorrentes de uma invasão militar portuguesa ao Peru (2013, p. 381).
O aprofundamento dos conflitos políticos no Brasil e no Peru nos anos imediatamente anteriores às formalizações de suas independências ainda costuma ser negligenciado por tradições historiográficas que, contrárias a todas as evidências, insistem nas mitificadoras versões, respectivamente, de uma independência «pacífica» e de outra «concedida»60. A manutenção desse tipo de explicação impede a compreensão dos significados de fenômenos importantes, como as expectativas elaboradas pelo periódico fidelista hispanoperuano El Triunfo de la Nación, que lançaria em junho de 1821 suas «Observaciones sobre los perjuicios que causaria la independencia á las Américas españolas». Para ele,
[…] estas grandes províncias no adoptarian un gobierno republicano, porque la experiencia de Buenos-Ayres y la historia del mundo las ha convencido de que este gobierno no proporciona á los naturales la tranquilidad interior necesaria. (...) La frontera del Brasil exigiria un cuidado particular, porque sería probablemente el teatro de guerras frecuentes: estabelecido en él un soberano, serian continuos los motivos de discórdia por limites, comercio, y miras de estencion, que no sería fácil evitar61.
A expectativa de um conflito aberto denuncia a constituição de um espaço político comum entre Brasil e Peru, em nada refratário a conflitos. E se a fronteira geograficamente contígua entre ambos era motivo de atenção, também o seriam as outras fronteiras descontínuas, que continuavam ativas com a passagem de gente de Lima ao Rio de Janeiro por via marítima. Em junho de 1821, por exemplo, arribou a este porto uma embarcação britânica proveniente de Valparaíso, trazendo a bordo a esposa e outros familiares do vice-rei deposto do Peru, Joaquín de la Pezuela, que já se encontrava em trânsito no Rio de Janeiro, bem como notícias dos acontecimentos no Peru62. Pouco depois, chegaria um brigue de guerra espanhol que transportava, em direção a Cádiz, o marquês de Valombroso e o coronel Antonio Sevara, encarregados pelo governo do Peru de comunicar a situação do Vice-reino ao rei da Espanha63.
Ora, as conexões marítimas entre Peru e Brasil, via Chile, não parecem obedecer, em 1821, a simples necessidade de navegação. Havia, na Corte do Rio de Janeiro e nos espaços públicos de discussão política do Brasil, cada vez mais amplos e politizados, mais do que interesse pelos sucessos da América espanhola: havia verdadeira necessidade dos mesmos, subsídios que eram a atuações políticas que, no Brasil daquele ano, cada vez mais lidavam com a possibilidade concreta de que a América portuguesa seguisse o mesmo curso político da maioria da América espanhola.
As primeiras notícias da independência do Peru parecem ter chegado ao Rio de Janeiro em meados de setembro, e davam conta de Lima conquistada menos pelo emprego direto das armas do que pela carestia e fome64. O Correio Brasiliense, editado mensalmente em Londres desde 1808, e cuja importante circulação em Brasil e em Portugal fornecia abundante notícia e análise a respeito dos acontecimentos da América espanhola, sentenciaria o ocaso irremediável da ordem realista no Peru em outubro, com a publicação de um armistício proposto a San Martín pelo vice-rei La Serna65. A conquista de Lima era acontecimento que, «noticiado ao mesmo tempo em que a revolução do México», segundo o Correio Brasiliense «põe fim à guerra dos Espanhóis na América». E segundo seu editor, «assim terminou de todo a dominação Espanhola nas costas do Mar Pacífico, e ficou selada a independência da América Meridional Espanhola»66.
Ainda em outubro de 1821 —quando da prisão de um inglês que, para preocupação das autoridades locais, «espalhava» a noticia— a tomada de Lima seria publicamente conhecida na Corte, mas confirmada e espalhada sobretudo a partir de novembro e dezembro, quando a Gazeta do Rio de Janeiro estamparia documentos a respeito. Outro jornal, a Malagueta, concebia que a queda do Peru realista trazia fortes motivos de preocupação para o Brasil:
Se o estado atual do espírito público de algumas importantes Capitanias do Brasil; Se o alvoroço em que se viu a Província de Pernambuco; Se a recente tomada da Cidade de Lima; Se vinte mil considerações não são suficientes títulos para nos mover à investigação das coisas que nos esperam, e a levar respeitosamente ao Soberano Congresso o perfeito conhecimento do nosso atual dilema; então terei de depor a pena67.
Em contrapartida, os acontecimentos do que sobrara da América realista continuariam a interessar à imprensa do Peru. Uma nota publicada em junho de 1822 pela Gaceta del Gobierno, parecia ratificar os temores expressos alguns meses antes pelo editor da Malagueta. Segundo a Gaceta,
[…] mucha parte del Brasil está en un estado de la mayor anaquia. La Bahia se ha hecho teatro de la guerra civil y allá mucha sangre se ha derramado. En Pernambuco tambien se han levantado, y aun en el Rio de Janeiro hay probabilidad de que se declaren por la independencia. Y muchos opinan que el Principe Real forme este partido68.
Uma vez definida a independência do Brasil, a experiência histórica que pelo menos desde 1808 vinha aproximando as Américas portuguesa e espanhola se modifica. Afinal, agora haverá um deslocamento de ênfase, da elaboração de expectativas em torno do futuro da crise política (vista como comum a Portugal, Espanha e suas respectivas colônias da América) para as condições de manejo de seus resultados mais expressivos (o que, por seu turno, também implicará novas expectativas). No Brasil, o período que se inaugura em 1822 é, assim, de criação de bases institucionais do novo Estado e do novo regime (monárquico), em sua relação com a sociedade. Isso incluirá a definição altamente conflitiva da composição territorial e política da nova unidade, a criação de instâncias representativas, a manipulação simbólica da nacionalidade, e o gerenciamento de novas relações jurídicas e internacionais.
Em fevereiro de 1823, o oficial Diário do Governo, editado no Rio de Janeiro, publicou um artigo de opinião no qual se tem um eloquente enunciado em torno da manutenção do atrelamento do curso político do Brasil ao do restante da América espanhola. Principia por um libelo em defesa da superioridade inerente ao regime monárquico em relação ao republicano, que teria propiciado ao Brasil uma trajetória e uma unidade políticas supostamente pacíficas:
[…] O Brasil, última das Potências Americanas que se vai constituindo, oferece ao Politico observador um quadro certamente digno da sua meditação. O mesmo espírito, o mesmo sistema que domina as Provincias do Sul, tem-se comunicado, como por virtude elétrica, às mais distantes Provincias do Norte [...] e completada por este modo a Confederação Brasílica, apresentaremos ao Mundo um fato poucas vezes acontecido, uma revolução desenvolvida um Povo que reassume os direitos inalienáveis da sua independência, quebra os vergonhosos ferros do seu vitupério, e entra, sem ter passado pelos horrores da guerra civil e da anarquia, no círculo das Nações livres do Universo.
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