— Então, senhor doutor? disse a S. Joaneira.
— Case-me esta rapariga, S. Joaneira, case-me esta rapariga. Tenho- lho dito tantas vezes, criatura!
— Mas, senhor doutor...
— Mas case-a por uma vez, S. Joaneira, case-a por uma vez! repetia ele pelas escadas, arrastando um pouco a perna direita que um reumatismo teimoso encolhia.
Amélia enfim melhorou - com grande alegria de João Eduardo, que enquanto ela estivera doente vivera numa aflição, lamentando não poder ser seu enfermeiro, e derramando às vezes no cartório uma lágrima triste sobre os papéis selados do severo Nunes Ferral.
No domingo seguinte, à missa das nove horas na Sé, Amaro, ao subir para o altar, entre as devotas que se arredavam, viu de relance Amélia ao pé da mãe, com o seu vestido de seda preta de largos folhos. Cerrou um momento os olhos; e mal podia sustentar o cálix com as mãos trêmulas.
Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o missal, se persignou e se voltou para a igreja dizendo Dominus vobiscum - a mulher do Carlos da botica disse baixo a Amélia "que o senhor pároco estava tão amarelo, que devia ter alguma dor". Amélia não respondeu, curvada sobre o livro com todo o sangue nas faces. E durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a face banhada num êxtase baboso, gozou a sua presença, as suas mãos magras erguendo a hóstia, a sua cabeça bem-feita curvando-se na adoração ritual; uma doçura corria- lhe na pele quando a voz dele, apressada, dizia mais alto algum latim; e quando Amaro, tendo a mão esquerda no peito e a direita estendida, disse para a igreja o Benedicat vos, ela, com os olhos muito abertos, arremessou toda a sua alma para o altar, como se ele fosse o próprio Deus a cuja bênção as cabeças se curvavam ao comprido da Sé, até ao fundo, onde os homens do campo com os seus varapaus pasmavam para os dourados do sacrário.
À saída da missa começara a chover; e Amélia e a mãe, á porta com outras senhoras, esperavam uma "aberta".
— Olá! por aqui? disse de repente Amaro, chegando-se, muito branco.
— Estamos à espera que passe a chuva, senhor pároco, disse a S. Joaneira voltando-se. E imediatamente, muito repreensiva: - E por que não tem aparecido, senhor pároco? Realmente! Que lhe fizemos nós? Credo, até dá que falar...
— Muito ocupado, muito ocupado... balbuciou o pároco.
— Mas um bocadinho à noite. Olhe, pode crer, tem-me causado desgosto... E todos têm reparado. Não, lá isso, senhor pároco, tem sido ingratidão!
Amaro disse, corando:
— Pois acabou-se. Hoje à noite lá apareço, e estão as pazes feitas...
Amélia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbação olhava para todos os pontos o céu carregado, como assustada do temporal.
Amaro então ofereceu-lhe o seu guarda-chuva. E enquanto a S. Joaneira o abria, apanhando com cuidado o vestido de seda, Amélia disse ao pároco:
— Até à noite, sim? - e mais baixo, olhando em redor, com medo: - Oh, vá! Tenho estado tão triste! tenho estado como doida! Vá, peço- lhe eu!
Amaro, voltando para casa, continha-se para não correr pelas ruas de batina. Entrou no quarto, sentou-se aos pés da cama, e ali ficou saturado de felicidade, como um pardal muito farto num raio de sol muito quente: recordava o rosto de Amélia, a redondeza dos seus ombros, a beleza dos encontros, as palavras que lhe dissera: - Tenho estado como doida! A certeza de que "a rapariga gostava dele" entrou-lhe então na alma com a violência de uma rajada, e ficou a sussurrar por todos os recantos do seu ser com um murmúrio melodioso de felicidades agitadas. E passeava pelo quarto com passadas de côvado, estendendo os braços, desejando a posse imediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia defronte ao espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o sustentasse a ele! Mal pôde jantar. Com que impaciência desejava a noite! A tarde clareava; a cada momento tirava o seu cebolão de prata, indo olhar à janela, com irritação, a claridade do dia que se arrastava devagar no horizonte. Engraxou ele mesmo os seus sapatos, lustrou o cabelo de banha. E antes de sair rezou cuidadosamente o seu Breviário - porque, em presença daquele amor adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus ou os santos escandalizados o viessem perturbar; e não queria, com desleixos de devoção, dar-lhes razão de queixa.
Ao entrar na rua de Amélia o coração bateu-lhe tão forte que teve de parar, sufocado; pareceu-lhe melodioso o piar das corujas na velha Misericórdia, que há tantas semanas não ouvia.
Que admiração quando ela apareceu na sala de jantar!
— Ditosos olhos que o vêem! Pensávamos que tinha morrido! Grande milagre!
Estavam a Sra. D. Maria da Assunção, e as Gansosos. Arredaram as cadeiras com entusiasmo para lhe dar lugar, admirá-lo.
— Então que tem feito, que tem feito? E olhe que está mais magro!
O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O Sr. Artur Couceiro improvisou-lhe um fadinho à viola:
Ora já cá temos o senhor pároco
Nos chás da S. Joaneira.
Isto já parece outra coisa,
Volta a bela cavaqueira!
Houve palmas. E a S. Joaneira, toda banhada de riso.
— Ai, tem sido uma ingratidão dele!
— Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o cônego. Uma casmurrice, digo eu!
Amélia não falava, com as faces abrasadas, os olhos úmidos pasmados para o padre Amaro - a quem tinham dado a poltrona do cônego, e que se repoltreava nela, túmido de gozo, fazendo rir as senhoras pelas pilhérias com que contava os desleixos da Vicência.
João Eduardo, isolado a um canto, ia folheando o velho álbum.
Assim recomeçou a intimidade de Amaro na Rua da Misericórdia. Jantava cedo, depois lia o seu Breviário; e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhava-se no seu capote e dava volta pela Praça passando rente da botica, onde os frequentadores caturravam, com as mãos moles apoiadas ao cabo dos guarda-chuvas. Mal avistava a janela da sala de jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam; mas ao toque agudo da campainha sentia às vezes um susto indefinido de achar a mãe já desconfiada ou Amélia mais fria!... Mesmo por superstição entrava sempre com o pé direito.
Encontrava já as Gansosos, a D. Josefa Dias; e o cônego, que jantava agora muito com a S. Joaneira e que àquela hora, estirado na poltrona, findava a sua soneca, dizia-lhe bocejando:
— Ora viva o menino bonito!
Amaro ia sentar-se ao pé de Amélia, que costurava à mesa; o olhar penetrante que se trocavam era todos os dias como o mútuo juramento mudo que o seu amor crescera desde a véspera; e às vezes mesmo, debaixo da mesa, roçavam os joelhos com furor. Começava então a cavaqueira. Eram sempre os mesmos interessezinhos, as questões que iam na Misericórdia, o que dissera o senhor chantre, o cônego Campos que despedira a criada, o que se rosnava da mulher do Novais...
— Mais amor do próximo! resmungava o cônego mexendo-se na poltrona. E com um arroto curto tornava a cerrar as pálpebras.
Então as botas de João Eduardo rangiam na escada, e Amélia imediatamente abria a mesinha para a partida de manilha: os parceiros eram a Gansoso, D. Josefa, o pároco; e como Amaro jogava mal, Amélia, que era mestra, sentava-se por detrás dele para o "guiar". Logo às primeiras vasas havia altercações. Então Amaro voltava o rosto para Amélia, tão perto que confundiam os seus hálitos.
— Esta? perguntava, indicando a carta com olho lânguido.
— Não! não! espere, deixe ver, dizia ela, vermelha.
O seu braço roçava o ombro do pároco: Amaro sentia o cheiro da água-de-colônia que ela usava com exagero.
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