Às vezes o coadjutor, que nunca o visitara na Rua da Misericórdia, aparecia ao fim do jantar: sentava-se arredado da mesa, e ficava calado com o seu guarda-chuva entre os joelhos. Depois, julgando agradar ao pároco, repetia, invariavelmente:
— Vossa senhoria aqui está melhor, sempre é estar em sua casa.
— Está claro, rosnava Amaro.
Ao princípio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S. Joaneira, provocando, animando o coadjutor (que era de Leiria) a contar os escândalos da Rua da Misericórdia. O coadjutor, por servilismo, tinha sorrisos mudos, repassados de perfídia.
— Ali há podres, hem? dizia o pároco.
O outro encolhia os ombros, com as mãos muito espalmadas ao pé das orelhas, numa expressão de malícia; mas não pronunciava um som, receando que as suas palavras, repetidas, escandalizassem o senhor cônego. Ficavam então soturnos, trocando, a espaços, frases moles; um batizado que havia; o que dissera o cônego Campos; um frontal do altar que era necessário limpar. Aquela conversa enfastiava Amaro: sentia-se muito pouco padre, muito distante da panelinha eclesiástica: não o interessavam as intriguinhas do cabido, as parcialidades tão comentadas do senhor chantre, os roubos da Misericórdia, as turras da câmara eclesiástica com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado, nas palestras eclesiásticas em que tão femininamente se deleitam os padres, e que têm a puerilidade duma caturrice e a tortuosidade duma conspiração.
— O vento está sul? perguntava ele enfim, bocejando.
— Sempre! respondia o coadjutor.
Acendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guarda-chuva, e saía com um olhar de revés à Vicência.
Era aquela a pior hora, a da noite, quando ficava só. Procurava ler, mas os livros enfastiavam-no; desabituado da leitura não compreendia "o sentido". Ia olhar à vidraça: a noite estava tenebrosa, o lajedo reluzia vagamente. Quando acabaria aquela vida? Acendia o cigarro, e do lavatório para a janela recomeçava os seus passeios, com as mãos atrás das costas. Deitava-se sem rezar às vezes; e não tinha escrúpulos: julgava que ter renunciado a Amélia era já uma penitência, não necessitava cansar-se a ler orações no livro; celebrara o "seu sacrifício" - sentia-se vagamente quite com o Céu!
E continuava a viver só: o cônego nunca vinha à Rua das Sousas, "porque, dizia, era casa que só o entrar nela até se lhe agoniava o estômago". E Amaro, cada dia mais amuado, não voltara a casa da S. Joaneira. Escandalizara-se muito que ela não lhe tivesse mandado pedir para ir às partidas da sexta-feira; atribuíra "a desfeita" à hostilidade de Amélia; e, mesmo para a não ver, trocara com o padre Silveira a missa do meio-dia onde ela costumava ir, e dizia a das nove horas, furioso com aquele novo sacrifício!
Todas as noites Amélia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitação tão forte no coração que ficava como sufocada um momento. Depois os botins de João Eduardo rangiam na escada, ou ela conhecia os passos fofos das galochas das Gansosos: apoiava-se então às costas da cadeira, cerrando os olhos, como na fadiga duma desesperança repetida. Esperava o padre Amaro; e às vezes, pelas dez horas, quando já não era possível que ele viesse, a sua melancolia era tão pungente que se lhe intumescia a garganta de soluços, tinha de pousar a costura, dizer:
— Vou-me deitar, estou com umas dores de cabeça que não paro!
Atirava-se para a cama de bruços, murmurava numa agonia:
— Oh Senhora das Dores, minha madrinha! Por que não vem ele, por que não vem ele?
Nos primeiros dias, apenas ele se fora embora, toda a casa lhe pareceu desabitada e lúgubre! Quando vira no quarto dele os cabides sem a sua roupa, a cômoda sem os seus livros, rompeu a chorar. Foi beijar a travesseirinha onde ele dormia, apertou ao peito com delírio a última toalha a que ele limpara as mãos! Tinha constantemente o seu rosto presente, ele entrara sempre nos seus sonhos. E com a separação o seu amor ardia mais forte e mais alto, como uma fogueira que se isola.
Uma tarde, que fora visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao chegar à Ponte gente parada, embasbacada com gozo para uma rapariga de cuia à banda e garibaldi escarlate, que, de punho no ar, já rouca, praguejava contra um soldado: o rapazola, um beirão de cara redonda e lorpa coberta de penugem loura, virava-lhe as costas, encolhendo os ombros, as mãos muito enterradas nos bolsos, rosnando:
— Não lhe fez mal, não lhe fez mal...
O Sr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parara a olhar, descontente daquela "falta de ordem pública".
— Algum barulho? perguntou-lhe Amélia.
— O1á, menina Amélia! Não, uma brincadeira do soldado. Atirou- lhe um rato morto à cara, e a mulher está a fazer aquele espalhafato. Bêbedas!
Mas a rapariga de garibaldi vermelho voltara-se - e Amélia aterrada reconheceu a Joaninha Gomes, sua amiga da mestra, que fora amante do padre Abílio! O padre fora suspenso, deixara-a; ela partira para Pombal, depois para o Porto; de miséria em miséria voltara a Leiria, e aí vivia nalguma viela ao pé do quartel, entisicando, gasta por todo um regimento! - Que exemplo, Santo Deus, que exemplo!...
E também ela gostava dum padre! Também ela, como outrora a Joaninha, chorava sobre a sua costura quando o Sr, padre Amaro não vinha! Onde a levava aquela paixão! À sorte da Joaninha! A ser a amiga do pároco! E via-se já apontada a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada por ele, com um filho nas entranhas, sem um pedaço de pão!... E, como uma rajada de vento que limpa num momento um céu enevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de Joaninha varreu-lhe do espírito as névoas amorosas e mórbidas, em que ela se ia perdendo. Decidiu aproveitar a separação, esquecer Amaro; lembrou-se mesmo de apressar o seu casamento com João Eduardo, para se refugiar num dever dominante; durante alguns dias forçou-se a interessar-se por ele; começou mesmo a bordar-lhe umas chinelas...
Mas pouco a pouco a idéia má que, atacada, se encolhera e se fingira morta, - principiou lentamente a desenroscar-se, a subir, a invadi-la! De dia, de noite, costurando e rezando, a idéia do padre Amaro, os seus olhos, a sua voz apareciam-lhe, tentações teimosas! com um encanto crescente. Que faria ele? por que não vinha? gostava de outra? Tinha ciúmes indefinidos, mas mordentes, que a queimavam. E aquela paixão ia-a envolvendo como uma atmosfera de onde não podia sair, que a seguia se ela fugia, e que a fazia viver! As suas resoluções honestas ressequiam-se, morriam como débeis florinhas naquele fogo que a percorria. Se às vezes a lembrança de Joaninha ainda voltava, repelia-a com irritação; e acolhia alvoroçadamente todas as razões insensatas que lhe vinham de amar o padre Amaro! Tinha agora só uma idéia - atirar-lhe os braços ao pescoço e beijá-lo, oh! beijá-lo!... Depois, se fosse necessário, morrer!
Começou então a impacientar-se com o amor de João Eduardo. Achava-o "palerma".
— Que maçada! pensava quando lhe sentia os passos na escada, à noite.
Não o suportava com os seus olhos voltados sempre para ela, a sua quinzena preta, as suas monótonas conversas sobre o governo civil.
E idealizava Amaro! As suas noites eram sacudidas de sonhos lúbricos; de dia vivia numa inquietação de ciúmes, com melancolias lúgubres, que a tornavam, como dizia a mãe, "uma mona, que até enraivece"!
O gênio azedava-se-lhe.
— Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a mãe.
— Não me sinto boa. Estou para ter alguma!
Andava, com efeito, amarela, perdera o apetite. E enfim uma manhã ficou de cama com febre. A mãe, assustada, chamou o doutor Gouveia. O velho prático, depois de ver Amélia, veio à sala de jantar sorvendo com satisfação a sua pitada.
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