Depois de bater a muita porta, entrei numa das lojas de roupa de um centro comercial recentemente inaugurado na cidade de Aveiro, e a gerente da loja achou por bem entrevistar-me. Criou-se empatia instantânea e dali a propor-me emprego, foi um ápice! Para mim era evidente que trabalhar numa loja de roupa era muito mais próximo da minha essência do que aquele curso superior de contabilidade, economia e finanças!
A paixão com que me passei a dedicar ao mundo da moda ia muito para além das peças de roupa ou da performance de venda propriamente dita! O que mais me preenchia era criar empatia com aqueles clientes mais inseguros e fechados, desbloquear-lhes o sorriso e preencher-lhes a alma, nem que fosse por um segundo, mesmo que depois saíssem da loja de mãos vazias! Mas era preciso vender, e durante aquela minha primeira experiência profissional, eu explorei a minha estratégia de negociação METIS ao máximo, ao ponto de alguns clientes darem por eles a falar sobre a sua vida, enquanto enchiam o saco de roupa quase sem se aperceberem! Apesar de eu ter aprendido a gostar do binómio «corpo-roupa», eu desenvolvi em mim o binómio «personalidade-roupa», ajustando as peças ao carácter de cada cliente. Era por demais evidente que a roupa era o que menos me importava — eu podia até estar a trabalhar num negócio de pastilhas elásticas, desde que envolvesse negociação e contacto humano.
Ao fim de praticamente dois anos a trabalhar na loja, foi-me montada uma cabala em que fui injustamente acusado de roubar dinheiro da caixa registadora. Aquilo era algo parecido com a história em que me haviam acusado de escrever a carta insultuosa à rapariga da turma. Mais uma vez, o meu carácter puro, genuíno e algo louco fez com que o «criminoso» me usasse como bode expiatório e cobaia. A gerente da loja, que até aquele momento me tinha como uma «máquina» fiel e produtiva, viu-se obrigada a desconfiar.
Já farto deste tipo de eventos, a minha intuição fez com que eu me despedisse, e saí pelo próprio pé sem sequer argumentar. Eu precisava do dinheiro e foi duro, muito duro fazer aquela Escolha sem sequer defender a minha inocência, mas eu sabia que ao colocar-me de novo em situação de aperto, eu iria crescer na necessidade de encontrar outra solução.
Pouco tempo depois de me ter despedido, a vida mostrou-me que a injustiça é como um vinho mais gastronómico, que com o passar do tempo perde os traços de madeira em que envelheceu, descobrindo-se-lhe o verdadeiro carácter! A diretora de recursos humanos do grupo de lojas ligou-me diretamente, pedindo-me desculpa e a implorar para voltar, pois após a minha saída os roubos continuaram e eles «caçaram» a malfeitora! Sinceramente, estava de orgulho ferido e não me apetecia voltar, mas como sou um tipo que adora o perdão, aceitei o apelo. Admito que também precisava de ganhar dinheiro, mas a verdadeira razão do meu regresso foi a compaixão e respeito por aquela jovem gerente que me tinha dado emprego inicialmente. A minha primeira gerente!
Uns dias a seguir ao meu regresso à loja, recebi um telefonema de uma ex-professora de português — dos tempos da escola profissional em Chaves — a convidar-me para criar e escrever um artigo da minha autoria para um jornal regional do qual ela era codiretora. Naquele momento, senti que a vida me estava a entregar sinais inequívocos do caminho que eu próprio tinha Escolhido. Fiquei verdadeiramente incrédulo e não entendia como é que uma ex-professora da escola secundária me estava a lançar um convite daqueles, ainda para mais sendo eu um dos alunos mais desorganizados e menos estudiosos que ela deve ter visto!
Viajei até Trás-os-Montes para me encontrar com a senhora, sem saber que aquilo que estava prestas a ouvir se viria a tornar numa das maiores lições de humildade que recebi na vida. Aquela minha ex-professora — que no meu tempo de estudante nunca demonstrara qualquer tipo de afinidade especial comigo — confessou-me que avaliava positivamente o conteúdo das minhas respostas nos exames, mesmo quando este pouco ou nada tinha a ver com o conteúdo das perguntas!! Justificou-se, explicando-me que apesar de eu não ser conhecedor da matéria, ela não poderia ignorar a forma como eu me expressava.
Obviamente que toda a gente vai pensar que aquela professora era uma assassina dos princípios-base da educação, mas para além de uma verdadeira lição de humildade, reconhecimento e gratidão, o que ela realmente fez foi ensinar-me que por mais errado que um conteúdo nos possa parecer, não devemos ignorar a forma como ele se apresenta perante nós.
Fiquei tão comovido com aquela sua confissão que expressei imediatamente o meu interesse pela sua proposta, até porque isso significava também mais uma pequena fonte de rendimento para mim! Batizei a minha rúbrica de «O 10 já viu» — em alusão à expressão «déjà-vu» — e nela dei vida a certos tabus da humanidade como o desejo, a sorte ou a coragem, pondo-os a analisar a forma como o ser humano os aborda. No fundo, era uma perspetiva invertida da vida.
Entre o trabalho a tempo inteiro na loja, as rubricas do jornal e a vida boémia, eu tinha também a maior de todas as certezas: saber o que não queria! E eu sabia que a área financeira não era para mim, apesar de também saber que, devido às circunstâncias da minha vida, eu não podia dar-me ao luxo de trocar ou abandonar aquele curso.
Fui progredindo nos estudos universitários a um ritmo de envelhecimento em garrafa, até que chegou o dia do último exame. O professor era um icónico Homem arrogante, conceituado mundialmente na área da contabilidade e conhecido na universidade como o «dono disto tudo». Preparei-me bem, mas correu-me mal e fui chamado à prova suplementar de escolha múltipla para tentar recuperar da nota negativa.
Eu estava desesperado, porque se reprovasse naquele exame, teria de permanecer mais um ano só com aquela cadeira, e isso não poderia de todo acontecer-me. Fiz então uma Grande Escolha e marquei reunião com o mítico professor no seu gabinete. Recebeu-me de forma arrogante e agreste, dando-me a entender que não estava habituado a que um aluno o abordasse daquela forma! Mantive-me calmo e genuíno, olhei o imponente homem nos olhos e disse-lhe que me faltava apenas aquela cadeira para acabar o curso.
«E o que é que você quer que eu faça?», perguntou-me em tom imperativo, acrescentando: «Prepare-se como todos os outros, depende tudo de si!». Percebi logo ali que qualquer intervenção me iria ser prejudicial. Deixei a minha emoção fluir por breves segundos, apertei-lhe a mão e agradeci-lhe o tempo que me dedicou, porque isso já era mais do que suficiente para ele.
Passados uns dias, ainda antes de as notas da prova suplementar serem publicadas, o saudoso, áspero e icónico professor — sportinguista excêntrico — enviou-me um e-mail pessoal: «Parabéns, acabou o curso». Nunca ficarei a saber se tive ou não tive nota para passar àquela cadeira, mas tenho a certeza de ter ganho a sua admiração pela coragem em ter ido ao seu gabinete. Sim, era precisa coragem! E sim, eu acredito que o professor me ajudou, porque lhe dei a conhecer a minha situação.
Demorei bem mais do que a conta para concluir o curso, é certo, mas esse foi também o tempo de que precisei para desenhar e constituir o meu Ser, que até à entrada na universidade era um castelo de areias levianas. Podia ter acabado o curso em metade do tempo? Sim, podia, mas também teria desperdiçado o tempo necessário para crescer.
***
Uma das maiores fragilidades que enfrentamos é a compreensão da essência humana e espiritual em idades cruciais como são a adolescência e a juventude adulta. É extremamente difícil, tanto para o jovem indivíduo — que por norma sonha bastante — como para os seus progenitores, perceber quais as Escolhas académicas e consequentemente profissionais que irão levar ao preenchimento e satisfação interior.
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