Resumindo a minha juventude em poucas palavras, eu vivi uma rutura cruel com aquela saída abrupta do Alentejo, seguida de quatro trocas de escola em Chaves, entre os onze e os dezoito anos, sempre a deixar raízes para trás e a ter de recomeçar praticamente tudo de novo.
Entretanto, numa conversa corriqueira com a minha Mãe, eu fiquei a saber que o meu nascimento não tinha sido planeado nem desejado! Uma importante descoberta aos dezoito anos.
Antes da candidatura à universidade, a minha Mãe deu-me uns trocos para ir de férias com dois dos poucos Amigos especiais que havia feito em Chaves. Carregámos debaixo do braço uma tenda envolta num saco do lixo preto, vinho em garrafão de plástico e lá fomos a caminho de um festival de música de verão. Entre transportes e boleias, recordo a chegada à Póvoa do Varzim, num final de dia em que vi e ouvi o mar pela primeira vez em muitos anos. As minhas lágrimas da saudade e liberdade fundiram-se com o oceano e talvez eu estivesse também a chorar a saudade da avó Emília. Afinal, naquela fase da minha vida eu ainda era aquela pessoa emotiva capaz de chorar sem qualquer pré-aviso, tal não era a forma pura e intensa com que vivia os eventos mais marcantes. Vivi aquelas primeiras férias em liberdade tão intensamente que no final do famoso festival de verão fui a figura Escolhida por um famoso jornal para ilustrar o ambiente que por lá se viveu!
Ao regressar a casa, eu fui invadido por uma força interior incrível e totalmente nova para mim, que me catapultou para uma dimensão de força interior muito estranha.
Organizei uma conversa com a minha Mãe para debater o tema da universidade, mas, para minha total frustração, o guião da Escolha alheia voltou a manifestar-se. Fui confrontado com uma proposta do género:
«Filho, a Mãe não tem meios financeiros para te pagar um quarto nem os estudos universitários numa cidade cara e longe de Chaves. Por isso, vamos ter de Escolher as universidades mais cercanas, aqui em Trás-os-Montes.»
Era perfeitamente compreensível a postura da minha Mãe, mas eu entrei num pânico e ebulição interiores tão intensos que nem o dom da palavra se soltou para argumentar perante ela. Ironicamente, naquele momento, eu queria que me roubassem a adolescência da mesma forma que não quis que me tivessem roubado a infância. Eu queria que me tirassem de Chaves e de Trás-os-Montes com a mesma intensidade com que nunca quis ter saído de Reguengos de Monsaraz e do Alentejo.
O formulário de candidatura à universidade é composto por oito opções, apresentadas por ordem decrescente de preferência. Enquanto a Mãe estava a preencher o papel, o meu ar de desespero silencioso devia ser tão evidente que ela me deixou Escolher as sétima e oitava opções! Ufa, que alívio!!!! Entre as seis primeiras opções por ela propostas, constavam as universidades de Mirandela, Bragança e Vila Real, todas em Trás-os-Montes. Quando chegou a minha vez de Escolher as tais sétima e oitava opções, coloquei Porto e Aveiro, por saber que os escassos Amigos de Chaves que eu tinha feito, iriam para essas cidades.
Tive náuseas só de pensar em ter de recomeçar tudo de novo, outra vez, e ter de ficar amarrado ali, enquanto via os meus Amigos distanciarem-se de mim, outra vez. Desculpem-me os transmontanos que devem estar a perguntar-se o porquê de tanta revolta com a região! Contudo, hoje percebo que a minha aversão às terras do norte não está necessariamente relacionada com algo de negativo que ali se respire — muito pelo contrário —, mas sim com a revolta que em mim vivia por me terem retirado cruelmente do sul.
A candidatura à universidade é entregue em mão e em versão em papel nos serviços administrativos da capital de distrito, Vila Real. E pronto, é essa a razão pela qual estou neste autocarro.
Sonhei tanto e tão intensamente nesta viagem, testemunhando cada árvore pela janela como se de um novo episódio da minha vida se tratasse. À medida que passavam os quilómetros, fui recapitulando o sinuoso caminho que vivi até aqui. O meu cérebro e alma estão numa sintonia tão sinfónica que a cada um destes quilómetros que passam, o meu corpo se agiganta e a minha passada se alarga. É como se algo de muito forte em mim se esteja a querer manifestar. Deve ser a liberdade, não sei! Talvez seja aquele espírito audaz da minha Mãe, ou talvez seja o amparo de minha Avó Emília que partiu fisicamente, mas que se encontra mais do que nunca perto de mim.
Estás a ver este papel amarrotado que tenho na mão? É o formulário da candidatura que supostamente vou entregar a seguir nos serviços administrativos. Mas isso não vai acontecer! Estou cansado que a vida e os outros me peçam constantemente para recomeçar tudo de novo, mas, desta vez, vou recomeçar com o selo de uma Escolha minha.
***
As fases da infância e da juventude são o germinar do nosso ser e são vistas pelos gurus das terapias como aquilo que define a base e os valores pelos quais o adulto se vai reger ao longo da sua vida. Pode em parte até ser verdade, mas o maior disparate que se comete é usarmos isso como justificação para as falhas maiores do adulto! É óbvio que se formos abusados sexualmente ou levarmos um grande par de cornos do nosso melhor Amigo enquanto somos jovens, não é a mesma coisa do que termos uma infância e uma juventude em que tudo é mais certinho e lógico!
É normal e expectável que, mediante os cenários vividos na juventude, o adulto se venha a comportar e a desenvolver de forma distinta, havendo, no entanto, uma grande margem de manobra para que o adulto possa Escolher entre viver mais perto ou mais longe dos seus traumas de criança. Essa é uma Escolha que fazemos e que estará sempre à nossa disposição.
Não é porque um dia somos católicos e acreditamos em curas milagrosas que no outro dia não podemos acreditar convictamente na espiritualidade e na reencarnação. Não é porque um dia vivemos longe daquilo que julgamos serem os genes das nossas raízes, que mais tarde não podemos regenerar comportamentos e formas de amar.
Por mais que queiramos dar o mérito ou acusar os outros pelo que nos acontece na vida, são sempre as nossas Escolhas de hoje que definem os estados em que nos vamos encontrar amanhã. Não importa se são Escolhas boas ou menos boas, nem importa se são Escolhas factuais ou simplesmente sobre a forma como encaramos e sentimos os eventos que nos vão surgindo na vida. O importante é ter consciência de que mesmo em situações em que o destino parece estar traçado, podemos fazer Escolhas que alteram as formas de encarar, sentir e digerir esse mesmo destino. Na maioria dos casos, não são os factos que importam, mas sim o significado que lhes damos no nosso interior.
Por razões óbvias, o Tipo não conseguiu abraçar conscientemente nenhuma vantagem daquela saída brusca do Alentejo nem de todas aquelas mudanças de escola. Por mais desamparado que se sentisse e por maior que fosse o seu sentimento de revolta, a verdade é que foi dessa forma que o Tipo se tornou no animal decidido que conheci naquele autocarro! Pareceu-me ser alguém capaz e pronto para poder Escolher, com vontade de moldar a adversidade a seu favor, transformando-a no combustível da sua própria evolução! No entanto, consegui também vislumbrar uma cegueira emergente, provocada por toda aquela revolta interior, que poderia talvez acabar por guiar o Tipo por caminhos e decisões mais instáveis e desgastantes no futuro.
Olhando para a infância e adolescência do Tipo, é certo que não vislumbro grandes motivos de festejo, mas também é certo que há muitos jovens a passar por bem pior! No entanto, apesar de todas as roturas, «Escolhas alheias» e «renascimentos existenciais» a que esteve sujeito, o Tipo não mergulhou numa vida sedentária de erros fatais e resignação, como acontece a muitos outros jovens em situações bem mais favoráveis. E porquê?
Читать дальше