Primeiramente, parece-me óbvio que os valores pelos quais se regia a sua Família tinham fundações de base assentadas na resiliência, coragem, solidariedade, bondade e sobretudo muito amor. Em segundo lugar, e apesar de não beneficiar da presença de um Pai biológico por perto, o Tipo tinha no seu Tio Chico um mar de valores e uma identidade masculina idónea.
As Escolhas alheias que tanto o fizeram sofrer, foram sendo amparadas por um conjunto de valores Familiares inquestionáveis e foi graças a isso que o Tipo pode Escolher entre perder-se… e descobrir-se.
Este meu primeiro encontro com o Tipo faz-me pensar naqueles jovens nascidos e criados no seio de Famílias abastadas, aparentemente estáveis e com o destino pré-definido, em que tudo é tão bem delineado à partida que se destrói bem antes da chegada. Ou então aqueles jovens educados em modo de regime militar, banhados precocemente pelos pais e pelas escolas na síndrome da responsabilidade e da performance, ficando tão formatados para trabalhar e ganhar dinheiro, que acabam precocemente entregues à estagnação interior. Pondo as coisas em perspetiva, creio que prefiro a infância atribulada do Tipo…
No final daquela viagem de autocarro, o Tipo derramou-se num intenso dilúvio de lágrimas de revolta, e eu naquele momento interpretei uma necessidade igualmente intensa de me desencontrar dele. Eu sabia que aquele papel amarrotado era afinal o formulário da sua candidatura à universidade, mas o que iria ele fazer a seguir? Abandonar a ideia da universidade ou cometer alguma loucura atroz?
Confesso que quis acompanhá-lo no passo seguinte, mas fiquei assustado com o seu intenso estado de revolta e decidi afastar-me, até que mais de vinte anos depois nos reencontrámos num gabinete médico.
Take II.
A última das opções, pode ser a melhor Escolha
No fundo, eu sabia que se entregasse aquela candidatura, que tinha preenchido com a minha Mãe, era praticamente certo que entraria em alguma universidade de Trás-os-Montes, e que isso me condenaria à estagnação no tempo e no espaço. Da sétima e oitava opções que a Mãe me tinha autorizado a Escolher — Porto e Aveiro respetivamente — eu tinha preferência pela que fosse mais longe de Trás-os-Montes e consequentemente mais perto do Alentejo. E por isso, Aveiro era a cidade que eu queria!
A minha intuição estava bruta e inquebrável, e eu deixei-a enraizar-se nos meus atos. Gritava-me tão alto que decidi dar-lhe as mãos, começando por amarrotar a candidatura vigorosamente. Posso chamar-lhe rebeldia, irresponsabilidade ou loucura, mas aquela minha revolta toda, era o meu espírito a reclamar a propriedade do meu mundo. Eu herdei o espírito lutador e felino da minha Mãe e, por isso, em vez de lhe pedir desculpa, eu estou-lhe eternamente grato!
Enquanto caminhava em direção aos escritórios para entregar a candidatura, eu sabia que me iam fazer preencher outro formulário porque o que preenchera com a minha Mãe estava completamente amarrotado. E esse era o desafogo da minha alma e o alimento da minha intuição.
Ao chegar aos serviços, dei por mim diante da senhora administrativa, enquanto todo o meu mundo tremia! A princípio ainda pensei entregar-me ao destino e esperar que a senhora, por sua própria iniciativa, me propusesse preencher uma candidatura nova. Mas depois pensei: e se ela não o fizer? E se ela aceitar a candidatura amarrotada? O meu destino de novo pendente de uma Escolha alheia? Não!
«Bom dia, minha senhora, pode, por favor, dar-me outro formulário de candidatura para passar a limpo? É que este que aqui tenho meti-o no bolso de trás e amarrotou-se durante a viagem de autocarro. A minha Mãe está lá fora e assinará o novo formulário, não se preocupe.»
Peguei no novo formulário com a pulsação a pedir um novo corpo, saí porta fora, dando a entender que ia ter com a minha Mãe, e, sem refletir um só segundo, inverti por completo a ordem de preferência das oito opções e falsifiquei a sua assinatura. Naquele momento, a oitava Escolha, que era Aveiro, passou a ser a primeira Escolha, e o número oito passou a ser o meu preferido! Aquela foi a minha primeira Grande Escolha.
No final daquele verão de 1998, foram publicados os resultados das candidaturas, e, sem surpresas para mim, fui colocado em… Aveiro! Se por um lado eu me culpabilizava um pouco por ter adulterado a candidatura, por outro lado a minha intuição dizia-me que aquele ato mudaria para sempre a minha vida e a da minha Família! Eu acreditava piamente nisto, embora o caminho se apresentasse bastante ingreme.
Primeiro problema: a Mãe não tinha condições financeiras para pagar os meus estudos numa cidade tão longínqua e com um custo de vida tão elevado. Mal soubemos da minha colocação, candidatámo-nos à bolsa de estudo da Universidade de Aveiro e o resultado foi… negativo!! Como é que era possível ser negativo, se nós mal tínhamos dinheiro para pôr comida na mesa?! Mais tarde, depois de ter visto a bolsa ser atribuída a estudantes com carro próprio e que viviam a cinco quilómetros da universidade, fiquei a perceber como funciona a maioria dos benefícios neste meu país. Mas pronto, não havia nada a fazer. Alias, havia! Para poder ganhar um extra, a Mãe abdicou ainda mais da sua existência para trabalhar no turno da noite, das oito da noite às oito da manhã.
O primeiro ano na Universidade de Aveiro, o aclamado ano de caloiro, foi, de forma expectável, o mais excêntrico de todos, o de muita descoberta e muita reinvenção.
Senti, logo no início, que estava um passo atrás da maioria em termos de preparação académica, mas que não tinha qualquer atraso no aspeto social e humano. Pelo contrário, aquela minha infância e juventude mostravam-me agora o seu lado vitorioso. Quando cheguei à universidade, eu não era minimamente consciente da importância e do valor da formação académica, e aquilo era acima de tudo um bónus da liberdade e do crescimento para mim, onde eu poderia finalmente viver em função das minhas próprias Escolhas. Para ajudar ao certame, o curso onde fui parar não tinha absolutamente nada a ver comigo (área de finanças), mas não podia dar-me ao luxo de desistir, mudar ou recomeçar.
Nesse primeiro ano de caloiro, dediquei-me a tudo menos aos estudos e não fiz uma única cadeira durante o período normal. No entanto, no mês de repescagem, em setembro, inscrevi-me em sete exames, passei a todos e consegui também passar para o segundo ano. Resumindo, num só mês fiz mais do que muitos outros alunos durante o ano inteiro. Foi o mais correto? Não! Mas naquele momento descobri que, eu querendo, tudo estava ao meu alcance.
Com o passar dos anos, percebi que o ritmo boémio, intenso e apaixonante que levava não poderia durar para sempre, embora ele funcionasse como uma espécie de alívio e recuperação do tempo perdido. Ter sido eu a Escolher o meu destino tinha-me dado a sensação de propriedade e justiça que buscava, mas atirava para cima de mim a responsabilidade sobre o meu próprio futuro. Cheguei então à conclusão de que eu não poderia ser livre se continuasse refém da minha dor interior e a única forma de superar os traumas era crescer como pessoa e espírito, fazendo mais Escolhas.
Ressaca após ressaca, a consciência começou a ficar pesada e eu não gostava daquela sensação. A partir de certo ponto, eu não podia continuar encostado ao estatuto de vítima das Escolhas alheias e de um passado turbulento, e tinha de mudar. Afinal de contas, eu é que havia Escolhido aquele destino, e, como tal, a minha Mãe não podia ser a única a pagar por isso.
Uma certa manhã, saí de casa decidido a arranjar um emprego que me permitisse acompanhar os estudos ao meu ritmo e ritmar a vida a meu custo. Nem que não desse para pagar tudo, daria pelo menos para me responsabilizar e me libertar psicologicamente do peso do esforço financeiro solitário da minha Mãe e da minha Irmã, que sempre que podia também ajudava.
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