— O highlight do nosso dia — disse Amara. — Como poderia eu esquecer.
— Aposto que nem dormiste — disse Óscar, em tom de brincadeira.
— Adivinhaste.
Gisela pôs um braço à volta dos ombros da amiga.
— Eu também não me esqueci e mal posso esperar — disse, entusiasmada.
— Também não é para tanto — disse Amara. Ivo soltou um risinho.
— Estás com muito mau humor para quem saiu da cama quase ao meio dia, ó Amara.
— Nem sequer são onze da manhã, o que quer dizer que é cedo de mais para te aturar — disse a rapariga antes virar as costas. — Vem lá ajudar-me a tratar das velas, Gisela.
Gisela acenou a mão para os rapazes.
— Até já.
Quase ao mesmo tempo surgia alguém na loja do Manuel Amílcar para comprar tabaco e Mário também regressou para dentro.
Ivo continuava a insistir com o cão:
— Vamos lá Fúria, toca a cagar!
Óscar voltou a vê-la, na sua mente e na sua imaginação, com uns olhos verdes muito grandes e inquisidores. Lembrava-se de a ver na escola e até de se cruzar com ela nas ruas da vila, mas nunca haviam trocado duas palavras. E logo naquela manhã. Não contava conhecer pessoas novas naquele que era praticamente o seu último dia na Terra. Apesar disso, talvez porque era a única pessoa no mundo que sabia o seu segredo, sentia-se quase triste por saber que nunca mais a voltaria a ver.
CAPÍTULO 3
Na rádio da loja passava um anúncio a um laxante.
Ao balcão, um homem gordo com cara de melão e cabeleira e barba amarela-acinzentada, conversava com Mário, que tinha deixado o jornal que estava a ler aberto nas páginas das prostitutas.
— É como eu te disse no outro dia, Mário, se queres fazer dinheiro tens de vender fruta!
— Eu já estou farto de dizer isso ao patrão, ele não me ouve.
— Pois, os patrões são complicados, por vezes. Eu próprio fui obrigado a discutir com vários dos meus. Entende, todo o patrão tem complexo e eles não gostam quando nós, o trabalhador pequeno, tem ideias porque fere-lhes esse… Enfim, fere-lhes esse complexo, compreendes?
— Sim — disse Mário, segurando no queixo. — Sim, acho que sim.
O homem gordo abriu os braços, como se tivesse dito a coisa mais inteligente de sempre.
— Então, prontos! A falar é que a gente conversa. Ou melhor, que a gente se entende. Agora o que tu tens a fazer, meu amigo, é convencer o senhor Amílcar disto. A fruta é o futuro, amigo Mário, não penses o contrário. Agora passa-me aí um maço, se fazes favor.
Óscar passou atrás do homem gordo e disse ao Mário para colocar na conta de Ivo as duas cervejas que levava lá para fora. Saiu da loja, entregou uma das cervejas a Ivo e voltou a sentar-se no seu poiso no passeio, com os pés na estrada.
— Disseste-lhe para pôr na minha conta?
Óscar disse que sim e provou a cerveja.
— Escuta, Ivo… Tu lembras-te da Caetana?
— Quem?
— Uma rapariga que andou na nossa escola. Chamava-se Caetana. Chama-se.
— Do nosso ano?
— Sim, mas de uma turma diferente — disse Óscar. — Aquela que estava quase sempre em salas ao lado das nossas.
— Sim, sim, sim. Era a turma do Luís, o que foi jogar badminton, e da Raquel, que se tornou modelo.
— Exato, essa turma.
— A Caetana… Ah, claro! Também com esse nome nem sei como é que não me estava a lembrar. Era aquela rapariga muito magra, não é? Quase esquelética, mesmo. Aliás, acho que a Laura uma vez disse-me que ela era anoréxica ou bulímica ou qualquer coisa assim. E que eu saiba nem era modelo como a Raquel.
— A Raquel também era bulímica?
— Não sei. Também foi a Laura que me disse, mas a Laura também é um bocadinho má língua, por isso não se pode levar tudo o que ela diz muito a sério. Não lhe digas que eu disse isto senão ela ainda me bate. É verdade, sabias que a Raquel é lésbica?
— Não — disse Óscar.
— Esta não foi a Laura que me disse, portanto deve ser verdade. Acho que ela anda com uma outra modelo agora, uma que veio do leste. O Tomás mostrou-me uma foto das duas. Lembraste como a Raquel era boa, certo? Pois a namorada dela ainda é melhor. Por acaso não sei se já deixam os homossexuais ter filhos ou não. Espero que sim. Eu oferecia-me logo para ajudá-las, se é que me entendes.
— Elas provavelmente preferiam adotar — disse Óscar. — Sendo modelos e tudo mais.
— Ah, pois, és capaz de ter razão. A não ser que haja modelos grávidas. Tipo coleção para grávidas, entendes? Olha que não era uma má ideia. Era capaz de dar dinheiro. Achas que alguém já teve essa ideia?
— Não sei.
— Eu também não, mas às vezes parece que as boas ideias já foram todas tidas por alguém. Penso nisso, às vezes, quando estou a pensar no que fazer. Tu sabes como eu sou. Vou fazendo uns biscates aqui e ali. Obras, entregar merdas. Um bocadinho de tudo, porque gosto de experimentar muita coisa. Vai-se conhecendo gente, vai-se conhecendo gajas boas. É fixe e dei-me bem em quase todo o lado. Tudo menos aqui, é claro.
Óscar sorriu.
— Foi quanto tempo que duraste? Um dia?
— Meio, mas o vosso patrão também é fodido. A dizer que eu agredi um cliente, coisa que nunca aconteceu.
— Mas agarraste-o — lembrou-o Óscar. — E ele fez queixa.
— Estava a recriar a cena em que a Arwen está a enfrentar os Nazgûl na água — explicou-se Ivo. — Que culpa é que eu tenho que o cliente e o senhor Amílcar não apreciem clássicos? Eles é que deviam ser despedidos só por isso.
— Sabias que a Liv Tyler ainda sabe dizer umas quantas coisas em élfico?
— Sou um grande fã, Óscar, é claro que sei — respondeu Ivo. — Mas como eu estava a dizer… Já tentei muitas coisas, mas nenhuma delas foi assim aquela coisa, como é que eu hei de dizer. Nenhuma foi a minha cena.
— Mas tu já tens a tua cena, certo? — Perguntou Óscar. — O rap.
— Sim, é verdade — disse Ivo. — O rap é a minha paixão número um. Tupac Shakur, N.W.A, Nas, Snoop, Biggie. Papo isso tudo. Não sou de guerras entre coasts, entendes? Mas tipo, não sou daqueles que só ouve rap e cospe em tudo o resto. Não. O rap para mim é o top do top, mas de uma maneira geral, gosto um pouco de tudo. Pop, rock, reggae, metal assim daquele pesado, europeu, baladas lamechas. Há muita merda boa por aí.
— No trabalho temos o rádio sempre ligado, portanto o que se ouve mais é mainstream.
— Não sou muito de rádio, sinceramente — disse Ivo. — Nunca passam rap.
Óscar assentiu.
— Normalmente é só pop. Pop mainstream. Antes não gostava muito, mas agora já me habituei. Mesmo assim continuo a preferir os géneros que eu já gostava. Música alternativa, eletrónica, sintética, se estivermos numa de rótulos. Mas às vezes é difícil.
— O que é?
— Como tu disseste, há muita merda boa por aí, mas às vezes é difícil encontrá-la. Há dias em que dou por mim e passei horas a ouvir as mesmas duas ou três músicas. Porque gosto delas, claro, mas também, sei lá… Suponho que é porque é difícil descobrir outra coisa quando estás tão apegado àquilo que já conheces.
Ivo massajou os pelos do queixo.
— Isso é tão profundo como ali o meu cão que não caga.
Óscar riu-se e olhou para o Fúria, que estava deitado no meio da estrada.
— Não estava a tentar ser profundo.
Ivo levou a cerveja à boca.
— Engana-me que eu gosto. Mas adiante. Enquanto a minha carreira de rapper não lança tenho de fazer qualquer coisa, certo? Houve aí uma altura em que eu também pensei escrever um livro, porque, no fundo, é como rap, contamos uma história. Mas depois desisti. Não gosto lá muito de livros.
— Eu também não — admitiu Óscar.
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