— Sempre temos o Ivo. Não é cliente, mas é engraçado.
— Sim, até é…
— E um chega bem, digo eu — concluiu Óscar, agarrando nas bolachas e dirigindo-se para a porta.
Mário encolheu os ombros.
Óscar foi sentar-se no lancil do passeio. À sua esquerda, a rua deserta abria para a zona dos armazéns antigos e maioritariamente abandonados; para a direita ficava o caminho para o centro da vila. À frente da loja de conveniência do senhor Manuel Amílcar, onde Óscar trabalhava há um par de anos, trabalhavam Gisela e Amara, numa loja que conseguia ter ainda menos clientes do que a sua.
Se lhe perguntassem, Óscar nem sequer sabia dizer que tipo de loja era aquela onde as raparigas trabalhavam. Não tinha nenhum toldo com um nome informativo e mesmo inspecionar o que havia exposto na montra não lhe dava respostas. Via-se muito material típico de uma papelaria, cadernos e canetas e afins, mas o sítio não era realmente uma papelaria, porque ao lado dos cadernos também se viam coisas como velas, incensos, estatuetas religiosas das mais variadas crenças e até algumas peças de roupa.
A grade ainda não tinha sido levantada, o que significava que nem Gisela nem Amara tinham chegado. Óscar acabou de comer e voltou para dentro para deitar o pacote vazio no caixote do lixo. Aproveitou também para comprar um sumo de laranja e bebeu-o ao balcão, enquanto o Mário dava uma olhadela ao jornal local.
— Está parado?
— Não se nota? — Mário abriu os braços, indicando vagamente o interior da pequena loja. — É o habitual. É sábado, o povo vai todo para a feira. Fruta, sabes? Estou farto de dizer ao Manel. Estas lojas de conveniência sem bombas de gasolina anexadas estão todas a morrer. Ou se é uma grande superfície ou se vende fruta. É assim que se faz dinheiro!
Um homem entrou na loja para comprar um maço de cigarros. Quando voltou a sair, Mário respirou fundo.
— Benditos sejam os fumadores.
Óscar levantou o sumo em jeito de brinde. Então, a porta da loja voltou a abrir e Óscar de imediato reconheceu o casacão cor-de-laranja de Ivo.
— Ora bem, quem é que me vai chupar a pila hoje?
— A pega da Rua da Pega já aqui não mora — disse-lhe Mário. — Vai procurar a outro lado.
— Então, meus, como é? — Perguntou Ivo, que puxava pela trela o seu enorme cão.
— Olha aí — avisou-o Mário. — Estou-te farto de dizer que o Manuel Amílcar não quer cães aqui, muito menos o teu. Já nos ameaçou despedir, a mim e ao Óscar!
Ivo revirou os olhos.
— O Manuel Amílcar se me chupasse a pila é que fazia bem. Anda lá, Fúria, que estes aqui não te querem. — Levou o cão para fora da loja e voltou a entrar. — Pergunto de novo — disse ele, ao encostar-se ao balcão. — Como é?
— É como vês — disse Mário com um bocejo, do outro lado do balcão. Ivo inclinou a cabeça, sorriu.
— E ficas surpreendido? Se fossem umas gajas boas aqui a trabalhar ainda valia a pena pôr aqui os pés.
— Tu estás aqui todos os dias — disse Óscar.
— Também é verdade — respondeu Ivo com um encolher dos ombros. Era um pouco mais alto do que Óscar, mas mais baixo do que Mário e muito mais largo do que ambos. Tinha cabelos muito loiros, compridos, e a barba amarela pouco espessa. — E o que é que estás tu a fazer aqui tão cedo? — Na cabeça, usava um gorro negro. — Não tinhas folga hoje?
— Tinha e tenho. — Óscar apontou para os headphones à volta do pescoço. — Fui às compras. Os meus antigos estragaram-se.
Ivo aproximou-se.
— Foste àquela loja de eletrónica ao pé dos correios?
— Mas há mais do que uma? — Perguntou Mário, que, entretanto, se acocorara atrás do balcão por qualquer coisa. A sua voz soava distante e abafada, como se estivesse num túnel.
Ivo continuou:
— Ainda no outro dia descobri que essa loja é do pai do Tomás.
— Tomás — repetiu Óscar, com ar de quem não estava a ver onde Ivo queria chegar.
— Andou na escola connosco. O Tomás Lopes. Lembras-te daquele vídeo que andava a passar? Daquele miúdo do nono ano que começou a bater na professora de ciências? Pegou-lhe na cabeça e atirou- a contra o quadro, mas depois ela mandou-o ao chão sabe-se lá como. Acho que sabia kung-fu ou jiu-jitsu ou uma cena assim.
Óscar espetou o lábio inferior para cima.
— O Tomás era esse miúdo?
— Népia, esse era aquele ruivo, o Daniel. O Tomás era o gajo que estava a filmar. Dava para ouvi-lo a rir durante o tempo todo. E, depois, no fim do vídeo, ouve-se o gajo a gritar
— Dê-lhe um chuto na pila, stôra — disse Óscar, quase automaticamente, recordando-se.
— Dê-lhe um chuto na pila, stôra — repetiu Ivo, entre gargalhadas. — Foda-se, o Tomás. Olha que o raio do vídeo ainda nos entreteve durante algum tempo. E esse Daniel, já agora? Sabes o que é feito dele?
Óscar disse que não com um abanar da cabeça.
— Porra, o puto desapareceu do mapa. Foi expulso da escola, claro, e depois foi para a Vila da Barata, mas acho que também não o quiseram lá.
— Na vila? — Perguntou o Mário, de volta à superfície.
— Na escola. — Ivo meteu uma mão ao bolso, apoiando-se melhor no balcão. — Depois não sei. Já ouvi dizer que mudou de país, que se meteu nas drogas e teve uma overdose. Até já ouvi dizer que se juntou a um culto.
— Que culto? — Perguntou o Mário.
— Sei lá eu. A primeira vez que ouvi essa história disseram-me que era uma cena tipo religiosa, que havia um gajo que dormia com bué gajas diferentes e que era venerado tipo Charles Manson e o caralho. Acho que se chamavam os Iluminados.
— Que nome pouco original — comentou Óscar, discreto.
Ivo estalou os dedos e concordou:
— Foi o que eu pensei também. Mas, como disse, essa foi a primeira vez que ouvi a história. Há muitas versões do que aconteceu ao Daniel. O Albano era da turma dele, pois é! Disse-me que ele encontrou um grupo de viajantes no tempo e pirou-se com eles. Foi o que ele contou.
Óscar esvaziou a garrafa de sumo.
— Se o Albano o diz…
Ivo fez um ruído que pareceu uma mistura da palavra “pois” e uma breve gargalhada.
— Vocês estão a ver aquela velha da roulotte, que apareceu aí há umas semanas? O Albano acha que ela também veio do futuro. — Fungou. — Bem sei que ele passa o dia a fumar e a ver séries da Netflix, às tantas perde-se entre o real e a ficção, mas nunca se sabe, não é?
Ficaram em silêncio por uns instantes, um momento cortado pelo suspirar de Mário, que disse:
— Acho que um culto podia ser divertido…
Ivo bateu as palmas das mãos sobre o balcão duas vezes e depois apontou para a porta.
— Vou ver do Fúria.
— Não te esqueças que hoje à tarde temos aquilo! — Lembrou-o Mário, a folhear o jornal novamente. Óscar também o deixou entretido com os seus pensamentos e retomou o seu lugar no lancil do passeio, em frente à loja. Sentou-se e bateu numa perna para chamar a atenção de Fúria, que se lançou sobre ele. Óscar encheu-o de festas na cabeça.
Ivo sentou-se perto deles.
— Aqui o nosso Fúria anda com problemas, sabes? Está com prisão de ventre desde anteontem à noite.
Óscar olhou para o animal. O Fúria, cujo nome completo, segundo Ivo, era Fúria de Sessenta e Nove Sóis, era um cão muito grande, bege que, também segundo Ivo, era meio pastor alemão e meio rafeiro. Óscar gostava dele. Era um bom animal e um cão bem-comportado, o que era de alguma forma surpreendente tendo em conta a educação que Ivo lhe dava.
— Já o levaste ao veterinário? — Perguntou. Ivo torceu o nariz.
— Estava a tentar evitar fazê-lo. O dono não vai à bola comigo, sabes? Eles até têm uma gaja boa a atender o pessoal, uma loirinha, um pouco mais velha do que nós. Pedi-lhe o número uma vez. Ela disse que tinha namorado e eu perguntei-lhe se queria outro. — Riu-se. — Ela não achou piada e o pai dela também não. Para azar é o dono daquilo. Fogo, mas um gajo assustador, tipo Dr. Hannibal Lecter, estás a ver? Ainda se vinga no Fúria.
Читать дальше