— Ainda o come?
— Sei lá — disse Ivo. — É pena porque a loirinha é mesmo boa. Bonita mesmo, entendes? Tem assim um daqueles sinais debaixo do olho. Clássico cliché e um clássico tesão aqui — apontou para a virilha. — Mas enfim. Seja como for, o Fúria não gosta de médicos. É um pouco como eu. —Fixou os olhos nos headphones novos de Óscar. — Também tive de comprar uns há uns tempos, os meus também se estragaram. Olha que foi fodido e de várias maneiras. Estava no Pornhub, estás a ver? Cena excelente. Gaja excelente. Estava-me quase a vir. De repente, não sei o que acontece, o fone direito deixa de funcionar. Cena do clímax. A voz da gaja já não se ouve. Estou a vir-me e está o gajo do vídeo a vir-se. Dois idiotas. E eu só oiço o gajo a gemer. Um russo qualquer. Fiquei fodido. Mais do que a gaja do vídeo, imagino. — Óscar abafou uma gargalhada. Ivo prosseguiu:
— Tenho que arranjar uma gaja. Vou fodendo quando posso, sabes como é, mas namoradas a sério já passou algum tempo. Mais de dois anos, para aí. A última foi a Laura. Laura Filipe, tu conheceste-a, andava na nossa turma. Passámos bons tempos. A família dela é rica para caralho. Toda pipi e tal. Viviam numa vivenda grande e o quarto dela era mesmo no topo por isso ficávamos sempre à vontade. Mas melhor era quando os pais dela não estavam lá. Aí fodíamos em todas as divisões da casa. Até na piscina, no verão. Bons tempos, bons tempos. Mas os pais não me gramavam. A mãe especialmente, e olha que eu sempre fui simpático. Até lhe trazia flores de vez em quando. Está bem que as apanhava no quintal à porta de casa, mas acho que ela não sabia isso. — Levou um dedo à boca, para tentar tirar qualquer coisa dos dentes. — Aposto que até saltou quando soube que a Laura e eu tínhamos acabado, raio da velha. Sabes que ela chegou a inscrever a Laura num daqueles programas de encontros? E nós ainda andávamos!
Óscar soergueu o sobrolho.
— Isso é fodido.
— Então, não é? — Ivo bufou pelo nariz. — Filha da puta. Se não fosse ela e o marido, eu e a Laura ainda estávamos juntos. Eles é que lhe fizeram a cabeça, sabes? Era só pressão. Só porque eu não sou um daqueles tipos todos queques que eles gostam.
— Mas vocês ainda se dão?
— Quem? Eu e a mãe da Laura?
Óscar estalou a língua, complacente.
— Tu e a Laura.
— Ah, sim — disse Ivo. — Não sabias? Nós não acabámos por nada de dramático. Ainda somos amigos. Podes imaginar o sofrimento da mãe dela quando ainda me vê a aparecer lá em casa. A velha pensava que se tinha livrado de mim. — Outro sorriso. — Pensasse melhor.
Óscar massajava a cabeça do Fúria.
— Gosto de uma música que se chama Laura.
— A sério? De quem é?
— Bat For Lashes.
— Não conheço — admitiu Ivo.
— É fixe — disse Óscar.
— A ver se digo à Laura para a ir procurar. Ah! — Algo no horizonte próximo lhe captara a atenção. — São as irmãs.
No passeio oposto ao deles apareceram Gisela e Amara.
— Bom dia, meninos! — Exclamou Gisela, a mais alta e a mais sorridente.
— Meninos? — Gritou Ivo para o outro lado da rua. — Aqui só há homens!
— Devem estar todos escondidos atrás de ti — respondeu Amara, que levantava a grade da loja para a abrir. Vestia um casaco de ganga azul sobre uma camisola de gola alta preta.
Ivo sacudiu uma mão na sua direção, sarcástico.
— Mas isto é que são horas para abrir o estaminé?
Gisela atravessou a estrada para cumprimentar o Fúria. Usava calças de fato de treino e um top branco, sem mangas. Não interessava que ainda estivessem no fresco início de primavera. Gisela nunca tinha frio.
— É sábado — disse, bem-disposta. — Abrimos mais tarde porque há menos clientes.
— Menos clientes do que os nenhuns habituais que temos no resto da semana — acrescentou Amara cinicamente, surgindo atrás da amiga. As tranças negras caíam-lhe até quase ao fim das costas e as pestanas longas escondiam olhos castanhos. — O que é que fazes aqui tão cedo, seja como for, Ivo? Gostas assim tanto de nos ver, é?
— A Gisela até gosto, agora tu, nem por isso.
Gisela riu-se e Amara sacudiu as tranças com uma mão.
— Já que estás tão empenhado em acordar cedo podias ajudar o Óscar e o Mário aí na loja. Assim não era só chatear o juízo de todos…
— Eu contribuo com a minha companhia e comentário social!
Amara não conteve o sorriso. Abanou a cabeça e foi para dentro da loja. Gisela, por outro lado, continuou a fazer festas ao Fúria. Tinha cabelos negros, tal como Amara, mas alisados até aos ombros. As duas não eram irmãs, apesar da insistência em jeito de brincadeira de Ivo e do que pensava grande parte da vizinhança, em jeito de acharem que as duas raparigas pretas deviam ser família. Gisela nasceu ali na vila, mas Amara só chegou aos cinco anos, quando os seus pais, considerados “exóticos” por muitos, decidiram mudar-se para ali.
— Ao Ivo já nem pergunto, mas estou a estranhar estares cá tão cedo, Óscar — disse Gisela, enquanto Fúria lhe mordiscava a ponta dos dedos. — Hoje não estavas de folga?
— Tive de sair e ainda não me apeteceu voltar para casa.
O sorriso de Gisela cresceu visivelmente.
— Fizeste bem. — Voltou-se de novo para o cão. — E tu, menino, estás bom ou quê?
— Estava melhor se se dignasse a cagar — respondeu Ivo, secamente. Gisela segurou a cabeça de Fúria entre as mãos, preocupada.
— Mas o que se passa?
— Está com prisão de ventre. Trouxe-o para ver se ele faz alguma coisa, senão vou mesmo de ter de o levar ao veterinário, coisa que não queria.
— Coitadinho — disse Gisela. — Tu vais fazer cocó, não vais, Fúria? Sei que vais. És um menino lindo. — Amara regressou do interior da loja-garagem para lhe dizer que tinham de trocar as velas da montra, mas nenhuma das duas mostrou qualquer intenção de retomar ao serviço. Não tardou para que também o Mário se juntasse a eles, o seu jornal do dia enrolado debaixo do braço.
— Alguma vez ouviste falar num culto de viajantes do tempo? — Dirigia-se a Gisela.
— O quê? — Amara procurou a resposta no rosto de Óscar, que ficou algo orgulhoso por ser visto como o sensato entre os rapazes.
— O Mário acha piada à ideia de um culto e o Ivo está convencido que a velha da roulotte veio do futuro. O Albano convenceu-o, digamos.
— O Albano que está sempre mocado?
— O próprio.
— Está bem.
— Mas de que velha é que estão a falar? — Perguntou a Gisela. Amara tocou-lhe no braço com a ponta do dedo.
— Conheces mais alguém que viva numa roulotte? — Gisela encolheu os ombros e Amara continuou: — Mas ela não é nenhuma viajante do tempo. E eu nem posso crer que acabei de dizer isto. Acho que é tipo vidente, lê cartas e sinas e essas coisas todas. Também não posso crer que estou a dizer isto, mas é o que é.
Gisela riu-se com a língua de fora.
— Não sejas mazinha. Já te disse que temos de ter a mente aberta a tudo. Caso contrário, pensa nas coisas maravilhosas que podes perder!
Amara revirou os olhos.
— Tens razão, ainda perco clientes. Ah, espera…
— Devias aprender com a tua irmã, ó Amara — disse Ivo. Gisela riu como sempre fazia, mas Amara não. — Pois a mim ninguém me tira a ideia de que a velha vem do futuro — continuou ele. — Eu nunca lhe falei, está certo, mas os nossos olhos cruzaram-se uma vez e foi muita intenso. Ali há qualquer coisa.
— Se calhar apaixonaste-te — disse Mário.
— Fogo, estou desesperado, mas não tanto! Já agora. Gisela. Amara. Hoje temos aquilo. Não se esqueceram, pois não?
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