— Bem veem — disse ele — que sou, com efeito, Jean Valjean.
Em todo o recinto já não havia juízes, nem acusadores, nem gendarmes ; não havia senão olhos fitos num só ponto e corações opressos. Ninguém se lembrou mais do papel que tinha de desempenhar: o delegado esqueceu-se de que estava ali para acusar, o presidente para dirigir a audiência, e o advogado para defender. Coisa extraordinária! Ninguém fez a mínima pergunta, não interveio autoridade alguma.
A feição característica dos espetáculos sublimes consiste no modo porque se apoderam de todas as almas e transformam todas as testemunhas em espectadores; sem dúvida, nem uma só pensou em que estava vendo resplandecer uma grande luz; e todos interiormente se sentiam deslumbrados.
Não havia a menor dúvida de que se achava presente Jean Valjean. Era claríssimo. A aparição deste homem fora suficiente para inundar de luz toda aquela questão, um momento antes tão obscura. Sem que fosse necessária a mais pequena explicação ulterior, toda aquela multidão, por uma espécie de revelação elétrica, compreendera rapidamente a simples e magnífica história de um homem que se denunciara para que em seu lugar não fosse condenado um inocente. Os pormenores, as hesitações, as fugitivas resistências possíveis, tudo se passou naquele facto luminoso.
Esta impressão dissipou-se depressa, mas naquele momento foi irresistível.
— Não desejo interromper por mais tempo a audiência — disse Jean Valjean. — Retiro-me, visto que me não prendem, tenho muito que fazer. O senhor delegado sabe quem eu sou e para onde vou, far-me-á prender quando quiser.
E dirigiu-se para a porta. Nem uma voz se ouviu, nem um braço se levantou para lhe obstar à saída. Todos se afastaram.
Naquele momento tinha ele em si qualquer coisa de divino que fez recuar a multidão. Atravessou, pois, vagarosamente por entre ela. Nunca ninguém soube quem abriu a porta, mas é certo que a achou aberta. Chegando ali, voltou-se para trás, dizendo:
— Senhor delegado, fico à sua disposição. — Depois dirigiu-se ao auditório: — Todos me julgam digno de compaixão, não é verdade? Meu Deus, quando penso no que estive a ponto de fazer, sinto-me digno de inveja. Todavia estimara mais que nada disto sucedesse.
Saiu e a porta fechou-se como se abrira; todos os que praticam certas ações soberanas, têm sempre a certeza de ser servidos por alguns dos que os admiram.
Ainda não tinha decorrido uma hora quando o veredicto do júri aliviou Champmathieu de todas as acusações. Champmathieu, solto imediatamente, saiu estupefacto, julgando toda aquela gente doida, e sem compreender coisa alguma de tão extraordinária visão.
LIVRO OITAVO — DESFORRA
I — Em que espelho Madelaine contempla os cabelos
O dia começara a despontar. Fantine passara uma noite de febre e insónia, mas não obstante povoada de felizes imagens; de madrugada adormecera.
A irmã Simplícia, que toda a noite velara junto dela, aproveitou este sono para ir preparar um calmante. A digna irmã de caridade estava, havia alguns instantes, no laboratório da enfermaria, curvada sobre as drogas e sobre os diferentes vidros, observando-os muito de perto, por causa da espécie de nevoeiro que o crepúsculo lança sobre todos os objetos. De repente, voltou a cabeça e soltou um pequeno grito.
Tinha diante de si o senhor Madelaine, que ali entrara silenciosamente.
— Ah! É o senhor maire! — exclamou ela.
Madelaine perguntou em voz baixa:
— Como está essa pobre mulher?
— Agora está menos mal. Mas chegámos a estar bem inquietas.
Depois contou-lhe o que ocorrera: que Fantine estivera muito mal na véspera, mas que se achara depois melhor porque acreditara que o senhor maire tinha ido a Montfermeil buscar-lhe a filha. A irmã não ousou interrogar o maire, mas bem percebeu que não era dali que ele vinha.
— Fizeram muito bem em não a desenganar — disse ele.
— Sim — tornou a irmã. — Mas vendo-o ela agora e sabendo que não lhe traz a filha, que lhe havemos de dizer?
Madelaine conservou-se por um instante pensativo e depois respondeu:
— Deus nos inspirará.
— Seja como for, não se deve mentir — murmurou a irmã em voz baixa.
Entretanto amanhecera. A claridade iluminava todo o quarto. De súbito, a irmã, levantando os olhos por acaso para Madelaine, a quem a claridade batia de chapa no rosto, exclamou:
— Jesus! Que foi que lhe sucedeu? Tem os cabelos todos brancos!
— Brancos?! — disse ele.
A irmã Simplícia não tinha espelho, mas abriu um estojo de cirurgia e tirou um espelhinho de que se servia o médico da enfermaria para se convencer de que qualquer doente estava morto vendo que já não respirava.
Madelaine pegou no espelho, viu nele os cabelos e disse:
— É verdade!
Esta palavra pronunciou-a ele com indiferença e como que pensando noutra coisa. A irmã de caridade sentiu-se gelada pelo que quer que era de desconhecido, que lhe parecia entrever em tudo aquilo.
— Posso vê-la? — perguntou ele.
— Mas o senhor maire não lhe manda buscar a filha? — disse a irmã, ousando apenas arriscar-se a uma pergunta.
— Sem dúvida, mas para isso são necessários dois ou três dias.
— Então, se ela daqui até lá não vir o senhor maire — tornou timidamente a irmã — não saberá que já voltou e mais facilmente se obterá que se resigne; quando a criança chegar pensará naturalmente que foi o senhor maire quem a trouxe. Deste modo não haverá mentira.
Madelaine pareceu refletir um instante e disse depois com gravidade e sossego:
— Não, minha irmã, preciso vê-la. Não poderei talvez demorar-me.
A religiosa pareceu não notar a palavra talvez e respondeu respeitosamente, baixando os olhos:
— Ela está a descansar, mas o senhor maire pode entrar.
Madelaine fez algumas observações sobre uma porta que se fechava mal e que produzindo bulha podia despertar a doente, em seguida entrou no quarto de Fantine, aproximou-se do leito e entreabriu as cortinas.
Estava a dormir.
A respiração saía-lhe do peito com o ruído trágico próprio daquelas doenças, e que faz esmorecer as pobres mães que velam à cabeceira de um filho adormecido, apesar de condenado. Mas esta respiração difícil mal lhe perturbava uma espécie de serenidade inefável espalhada em todo o rosto e que a transfigurava enquanto dormia.
Fantine tinha as faces vermelhas e o que era palidez convertera-se em brancura. As compridas pestanas loiras, única beleza que lhe restava da sua virgindade e juventude, apesar de cerradas e baixas, palpitavam. Toda ela tremia como que um abrir de asas prestes a levantar voo e a levá-las, asas que se sentiam agitar, mas que não se viam. Quem a visse daquele modo não poderia acreditar que era uma enferma quase sem esperança. Assemelhava-se mais ao que está para voar do que ao que está para morrer.
O arbusto, quando a mão se lhe aproxima para lhe tirar a flor, estremece, e parece ao mesmo tempo esquivar-se e oferecer-se. O corpo humano participa um tanto desse estremecimento quando chega o instante em que os dedos misteriosos da morte lhe vão colher a alma.
Madelaine conservou-se por algum tempo imóvel junto do leito, olhando simultaneamente para a doente e para o crucifixo, como o fizera dois meses antes, no dia em que fora pela primeira vez visitá-la àquele asilo. Estavam ainda ambos, na mesma atitude, ela dormindo, ele orando; a diferença era que agora, e depois desses dois meses, tinha ela os cabelos grisalhos e ele tinha-os brancos.
A irmã não entrara juntamente com Madelaine. Este estava, pois, junto do leito, de pé, e com um dedo sobre os lábios, como se quisesse impor silêncio a alguém que estivesse no quarto. Entretanto, Fantine abriu os olhos, e ao vê-lo ali, disse-lhe, sorrindo com serenidade:
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