— É o Jean Valjean — disse Cochepaille —, é o mesmo a quem chamavam Jean-le-Cric, tanta era a força que ele tinha!
Cada uma das afirmativas destes três homens, evidentemente sinceras e de boa fé, suscitara no auditório um murmúrio que crescia e se prolongava por muito tempo, cada vez que uma nova declaração se juntava à precedente.
O acusado escutara-as com a expressão de espanto que, segundo a acusação, era o principal meio de defesa. A primeira tinham-no os gendarmes que estavam ao lado dele, ouvido dizer por entre os dentes: «Bem, cá está um!» Depois, à segunda, dissera um pouco mais alto e com ar quase satisfeito: «bom!» À terceira, exclamou: «Magnífico!»
— Acusado, ouviu o que se disse? O que tem a responder?
— Eu respondo, magnífico!
No mesmo momento rompeu no auditório prolongado rumor, que quase se comunicou ao juiz.
— Oficiais de justiça, façam restabelecer o silêncio. Vão-se formular os quesitos.
Ato contínuo, houve certo movimento ao lado do presidente e ouviu-se uma voz dizer:
— Brevet, Cheneldieu, Cochepaille! Olhem para este lado!
Todos os que ouviram esta voz se sentiram gelados, tanto ela era lastimosa e terrível. Todos os olhos se voltaram para o lado de onde ela partira. Um homem que se encontrava entre os espectadores privilegiados que tinham assento por trás da presidência, levantara-se, empurrara a porta da teia que separava o tribunal do pretório, e avançara para o meio da sala. O presidente, o delegado, o senhor Barmatabois, vinte pessoas em suma, o reconheceram imediatamente e exclamaram:
— O senhor Madelaine!
XI — Champmathieu cada vez mais admirado
Era, com efeito, Madelaine. A vela que estava sobre a mesa do escrivão iluminava-lhe o rosto. Tinha o chapéu na mão, e a sobrecasaca cuidadosamente abotoada; não se lhe notava o mínimo desalinho no vestuário. Estava muito pálido e tremia ligeiramente. Os cabelos, ainda grisalhos no momento em que chegara, haviam-se-lhe tornado de todo brancos. Encanecera numa hora.
Todas as cabeças se ergueram. A sensação foi indescritível. Houve no auditório um momento de hesitação. A voz que se ouvira fora tão pungente, o homem que se apresentara no meio da sala parecia tão tranquilo, que em princípio ninguém compreendeu coisa alguma. Todos perguntavam quem tinha falado. Ninguém podia acreditar que fosse aquele homem de aspeto tão sossegado, quem tivesse soltado o medonho grito.
Esta indecisão durou apenas segundos. Antes mesmo que o presidente e o delegado tivessem podido dizer uma palavra, o homem a quem todos ainda chamavam senhor Madelaine, dirigira-se para as testemunhas Cochepaille, Brevet e Cheneldieu.
— Não me reconhecem? — perguntou ele.
Os três forçados ficaram estupefactos e fizeram com a cabeça um sinal negativo. Cochepaille, intimidado, fez-lhe uma continência militar. Madelaine voltou-se para os jurados e para a presidência e disse com voz suave:
— Senhores jurados, mandem soltar o acusado. Senhor presidente, mande-me prender: o homem que procuram não é ele, sou eu. Sou Jean Valjean.
Parecia que ninguém respirava. À primeira comoção de espanto sucedera silêncio sepulcral. Sentia-se na sala uma espécie de terror religioso, que domina as multidões quando se efetua algum acontecimento.
Entretanto, o rosto do presidente apresentava a expressão de simpatia e tristeza, o presidente trocara rápido sinal com o delegado e algumas palavras em voz baixa com os conselheiros assessores. Em seguida dirigiu-se ao público e perguntou num tom que foi geralmente compreendido.
— Há por aí algum médico?
Em seguida falou o delegado:
— Senhores jurados, este incidente tão extraordinário e inesperado, não me inspira, como aos senhores, senão um sentimento que não necessitamos expressar. Todos conhecem, ao menos pela reputação, o honrado e respeitável senhor Madelaine, maire de Montreuil-sur-mer. Se no auditório se encontra algum médico, juntemos o nosso pedido ao do senhor presidente, para que se apreste a assistir ao senhor Madelaine, acompanhando-o à sua residência.
O senhor Madelaine não deixou o delegado acabar de falar. Interrompeu-o num tom cheio de mansidão e ao mesmo tempo de autoridade. Eis as palavras que ele pronunciou; ei-las literalmente, tal como desde logo foram registadas na audiência por uma das testemunhas desta cena, como soam ainda aos ouvidos dos que as ouviram há perto de quarenta anos.
— Agradeço ao senhor delegado os seus bons desejos, mas não estou louco, como vou provar. Os senhores estavam a ponto de cometer um grave erro; soltem esse homem, eu sou um infeliz condenado que venho cumprir um dever. Sou o único que digo a verdade, porque só eu vejo claro em tudo isto. O que faço neste momento é compreendido por Deus, que me está vendo, e é quanto me basta. Eis-me, pois, podem prender-me. Não obstante, fiz quanto pude. Ocultei-me sob outro nome, enriqueci, tornei-me maire, quis de novo ser contado entre a gente de bem. Agora, parece-me uma coisa impossível. Enfim, há muitas coisas que não posso dizer, nem eu venho contar-lhes a minha vida, um dia a conhecerão. É verdade que roubei o senhor bispo, é ainda verdade que roubei o rapazinho Gervásio. Tiveram razão para lhes dizerem que Jean Valjean era um malvado da pior espécie. A culpa não é, talvez, dele. Escutem, senhores juízes: um homem caído tão baixo como eu, não pode fazer a menor admoestação à Previdência, nem dar conselho algum à sociedade, mas notem que a infâmia de que eu intentei sair é uma coisa nociva. As galés fazem o forçado. Registem, se querem, estas palavras. Antes de ir para as galés, era eu um pobre camponês pouco inteligente, uma espécie de idiota; as galés transformaram-me. Era estúpido, tornei-me mau; era acha, tornei-me tição. Mais tarde, a Indulgência e a bondade salvaram-me, como a severidade me perdera. Mas desculpem-me, os senhores não podem compreender o que lhes estou dizendo. Encontrarão em minha casa, entre as cinzas do fogão, a moeda de quarenta soldos que há sete anos roubei ao saboiano Gervásio. Não tenho mais nada a acrescentar. Agora prendam-me. Mas, meu Deus!, o senhor delegado não me acredita, meneia a cabeça e diz consigo: Madelaine perdeu a razão. Eis o que em extremo me aflige. Ao menos não condenem este homem! O quê! Pois estas testemunhas não me reconhecem! Desejava que aí estivesse Javert, esse reconhecer-me-ia!
É impossível dar ideia da benévola melancolia e do tom sombrio em que foram ditas estas palavras.
Em seguida voltou-se para os três forçados: .
— Pois bem, eu reconheço-o, Brevet! Não se lembra... —Interrompeu-se, hesitou um momento e continuou: — Não te lembras daqueles suspensórios bordados em xadrez que tu tinhas nas galés?
Brevet sentiu uma espécie de repelão de surpresa e mirou-o de alto a baixo.
Madelaine continuou:
— Tu, Cheneldieu, que te apelidavas a ti mesmo de Nega-a-Deus, tens o ombro direito todo queimado porque te deitaste um dia em cima dum braseiro para apagares as três letras T. F. P., que ainda depois se continuaram a distinguir. É verdade ou não é?
— É verdade — disse Cheneldieu.
Depois dirigiu-se a Cochepaille:
— Cochepaille, tu tens junto do sangradouro do braço esquerdo uma data em letras azuis. É a data do desembarque do imperador em Cannes: 1 de março de 1815. Arregaça a manga.
Cochepaille arregaçou a manga e todos os olhos se lhe fitaram no braço nu. Um gendarme aproximou uma vela: ali estava, com efeito, a data.
O desgraçado voltou-se para o auditório e para os juízes com um sorriso, que ainda não se pôde apagar da memória dos que o viram, e que se sentem ainda angustiados quando pensam nele. Era o sorriso do triunfo, mas era também o do desespero.
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