— Com que então atacas pelas costas! Assim têm razão os que dizem que feres à traição!
Outra pedra disparada pelo díscolo deu-lhe apenas tempo para defender o rosto com o braço e recebê-la com o cotovelo.
— Não tens vergonha? Que te fiz eu? — gritou.
Como resposta, o miúdo pôs-se em guarda contra o ataque de Aliocha. Mas vendo que nem agora queria castigá-lo, deu um salto de animal selvagem acossado, atirando-se contra o noviço e, antes que este pudesse evitá-lo, pegou-lhe numa mão e mordeu-lhe o dedo médio com a zanga frenética que o excitava. Foi um momento de luta feroz. Os dentes fincavam-se, agudos, na carne de Aliocha, fazendo-o dar gritos de dor. Depois fez um esforço para se soltar. O pequeno deixou-o, pondo-se à distância de um salto. O dedo de Aliocha, aberto até ao osso na raiz da unha, começou a sangrar. Tirou o lenço e aconchegou a ferida. A ferazita estava imóvel, contemplando a operação que durou um minuto. Depois Aliocha levantou os seus olhos doces e ficou-se a olhá-lo.
— Muito bem — disse. — Já viste com que crueldade me trataste. Estás satisfeito, hem? Pois agora quero que me digas o que foi que te fiz.
O pequeno olhava-o, admirado.
— Não te conheço. É a primeira vez que te vejo, hoje — continuou o noviço, sem perder a serenidade. — Mas devo ter-te feito alguma coisa. Não me tratarias assim sem mais nem menos. Diz-me, pois, o que aconteceu. Conta-me tudo.
O rapaz não conseguiu responder. Desatou a chorar e afastou-se de Aliocha. Este foi atrás dele, sem apressar a marcha, pela Rua Mikailovski. Durante um bom bocado, ouviu os soluços do miúdo, que se ia afastando, e como agora não podia perder tempo, resolveu procurá-lo em melhor ocasião para decifrar o enigma.
Capítulo 4 — Em Casa de Hohlakov
Aliocha pôs-se em casa da senhora Hohlakov em breve tempo. O edifício, de dois pisos, era um dos mais fortes e bonitos da cidade. A proprietária vivia na província, onde possuía também uma vasta fazenda, e em Moscovo, onde tinha casa própria. A da nossa cidade fora-lhe deixada pelos avós, com um rendimento que, conquanto importante em tempos, era já muito reduzido agora.
A senhora apressou-se a acorrer ao salão onde o noviço se encontrava.
— Recebeu a carta acerca do novo milagre? — perguntou arrebatada e nervosa.
— Sim, recebi.
— E participou o seu conteúdo a toda a gente? Sabe, o filho já voltou a casa da mãe!
— Está a morrer, o Presbítero — disse Aliocha.
— Sim, eu sei. Oh, quantas coisas tenho a contar-lhe sobre isto! A si e a certa pessoa. Não, a si, a si! E pena tenho de não o poder ver! Toda a cidade está comovida, presa de uma geral expectativa. Mas agora... Sabe que Catalina Ivanovna está cá?
— Ah! Que sorte! — exclamou Aliocha. — Assim poderei vê-la. Precisamente ontem pediu-me que passasse lá por casa.
— Eu sei. Sei tudo. Contou-me o que aconteceu... e a abominável conduta dessa mulher. C’est tragique, e estivera eu no seu lugar não sei o que teria feito. Seu irmão, Dmitri Fedorovitch? Que pensa dele? Deus me valha! Com esta louca imaginação esquecia-me de lhe dizer, Alexey, que seu irmão também aqui está com ela. Não o que ontem se mostrou terrível e espantoso, mas o outro, Ivan Fedorovitch. Estão numa conversa muito séria. Se soubesse o que se passa entre os dois... É tremendo! Asseguro-lhe que isto parece um pesadelo. Sofrem os dois sem saberem porquê. Eles próprios o reconhecem, mas têm prazer no tormento. Eu esperava-o. E com que ânsia! Isto é superior às minhas forças, o que torna o caso pior. Já lhe conto tudo. Porém, agora, devo falar-lhe de outra coisa mais importante de que me ia esquecendo. Ora vamos a ver: como se explica que Lisa tenha tido um ataque de nervos? Apenas lhe disseram que chegara, começou a transtornar-se.
— Mamã, quem vai ficar transtornada és tu, eu não!
A voz de Lisa chegava até eles, trémula de riso contido, pela porta do lado, e Aliocha compreendeu que estivera a espreitá-lo.
— Não duvido, filha, não duvido. Os teus caprichos enlouquecem-me. Mas está doente, Alexey Fedorovitch. Passou uma noite horrível, com febre e sem deixar de gemer um só momento. Desesperei enquanto não foi dia para chamar Herzenstube, que nos disse que nada pode fazer e que precisamos de paciência. É sempre o que o médico diz. Quando o viu chegar pôs-se a dar gritos, com uma crise nervosa, e insistiu para que o levássemos para essa sala aí ao lado.
— Eu não sabia que vinha, mamã! E a ele pouco se lhe importa o meu desejo de permanecer aqui!
— Isso não é verdade, Lisa, porque Júlia, que estava à porta por tua ordem, avisou-te da sua chegada.
— Não fazes grande honra à tua educação, mamã querida; mas se queres emendar essa confusão com palavras de maior talento, não terás mais que dizer ao nosso digno visitante que mostrou verdadeira falta de tato atrevendo-se a vir aqui depois do que se passou ontem, quando é causa de riso para toda a gente.
— Lisa! Tens a língua demasiado solta! Obrigas-me a ser severa. Quem se ri dele? Eu estou bem contente por estar aqui. Preciso dele e nada posso fazer só. Que desgraçada sou, Alexey!
— Mas... o que tens, mamã querida?
— Que hei de ter? Os teus caprichos, Lisa; a tua doença e a tua irreflexão. E o pior é esse sempiterno Herzenstube! É tudo, tudo... Até esse milagre! Oh, como me transtornou, amigo Alexey! E, para cúmulo, essa tragédia no salão, que está para além do que posso suportar! Não posso, não, e é possível que seja mais uma farsa do que uma tragédia. Diga-me: acha que o Padre Zossima viverá até amanhã? Viverá? Ah! Meu Deus! Que tenho eu que sempre que fecho os olhos vejo como tudo é absurdo!
— Agradecia-lhe imenso — interrompeu Aliocha de súbito — que me desse um trapo limpo para ligar este dedo. Tenho-o ferido e dói-me muito. — E retirou o lenço ensopado de sangue.
A senhora deu um grito e exclamou, fechando os olhos:
— Deus do Céu, que ferida! É horrível!
Naquele momento a porta da sala contígua abriu-se com força e Lisa apareceu no vão, gritando autoritariamente:
— Venha, venha cá! E deixe-se de brincadeiras! Meu Deus! O que o fez estar sem dizer nada até agora? Podia morrer de uma hemorragia, mamã! Como fez isso? Água, água! Primeiro que tudo é preciso limpar bem o dedo, pondo-o em água fria para acalmar a dor. Deixa-o estar um bocado e... Depressa, mamã, água numa bacia. Mas apressa-te! — acabou nervosamente, espantada perante a ferida.
— Não seria conveniente mandar chamar Herzenstube? — lembrou a mãe.
— Mamã, queres que eu morra? O teu querido Herzenstube virá apenas para dizer que não pode fazer nada. Água, água! Mamã, por favor, por todos os santos, vai tu mesma e apressa a Júlia. Aquele estafermo não é capaz de andar mais depressa por nada deste mundo. Depressa, mamã, ou queres que morra?
— Mas isto não é nada! — interrompeu Aliocha, alarmado por tanto barulho.
Júlia entrou com a água e Aliocha banhou o dedo.
— Uma gaze, mamã, por favor. Traz-me uma gaze e a loção para feridas!... Como se chama? Ainda há um resto. Sabes onde tens o frasco, mamã? No teu quarto, no armário da direita. Está lá também um maço de algodão.
— Trago-o já, Lisa, mas não me grites. Repara como sofre. Onde arranjou essa ferida tão profunda?
E saiu a buscar o que Lisa lhe pedia.
— Antes de tudo o mais, diga-me onde se feriu tão brutalmente — suplicou a moça com impaciência logo que a mãe os deixou sós. — Responda depressa, tenho outras perguntas a fazer-lhe.
Aliocha compreendeu que ela queria aproveitar a ausência da mãe e, em poucas palavras, contou precipitadamente o extraordinário encontro com os rapazes da escola. Lisa segurou-lhe nas mãos e, como se tivesse algum direito sobre ele, repreendeu-o, lamentando amargamente:
Читать дальше