— As vossas palavras são terríveis! Mas, santo e bendito padre — disse o outro cada vez mais animado —, é certo o rumor chegado ao meu longínquo país de que estais em comunicação constante com o Espírito Santo?
— Algumas vezes digna-se baixar, voando.
— Como voa? Em forma de quê?
— Como um pássaro.
— Em forma de pomba?
— Uma coisa é o Espírito Santo e outra o espírito dos santos. O Espírito Santo pode aparecer sob a forma de aves diferentes. Umas vezes fá-lo como andorinha, outras como pintassilgo e outras ainda como verdelhão.
— E como O conheceis num vulgar verdelhão?
— No modo como fala.
— Como e em que língua?
— Na nossa.
— E que vos diz?
— Pois hoje mesmo me disse que me visitaria um imbecil que me faria perguntas impertinentes. Queres saber demasiado, monge!
— São terríveis as vossas palavras, santíssimo e venerado padre — murmurou o de Obdorsk com sinais de surpresa, ainda que nos olhitos houvesse uma luminosidade de maliciosa dúvida.
— Vês esta árvore? — perguntou Feraponte depois de uma pausa.
— Sim, bendito padre.
— Tu crês que é um olmo, mas para mim é outra coisa bem diferente.
O monge ficou suspenso. Depois, recobrando o ânimo, atreveu-se:
— Que coisa?
— Isto acontece de noite. Vês estes dois ramos? São os braços de Cristo que se estendem para mim, suplicantes. Vejo-o como te estou a ver agora, a ti, e tremo. É horrível, horrível!
— Como pode ser horrível se é o próprio Cristo?
— É porque me quer apanhar e levar.
— Vivo?
— Pela alma e glória de Elias! Não to estou a dizer? Como tomar-me nos braços e arrebatar-me às alturas!
***
Ainda que de volta à cela se mostrasse muito perturbado da conversa que manteve com um dos irmãos acerca do solitário, no fundo da alma sentia mais respeito e veneração por este do que pelo Padre Zossima. Acérrimo partidário do jejum, não podia admirar-se de que quem o levava a tal rigor, como o Padre Feraponte, se fizesse digno de «ver prodígios». Certo que as suas palavras eram um tanto originais, mas Deus sabia o sentido que ocultavam. E ao fim e ao cabo não se manifesta vulgarmente mais extravagantes em atos e em palavras quem sacrifica a sua inteligência à glória de Deus? Acreditava naquilo de agarrar o diabo pela cauda sem qualquer dúvida, a pés juntos e não precisamente no sentido metafórico. Além do mais, havia chegado ao mosteiro já com um arreigado preconceito contra os presbíteros que, embora ele os não conhecesse mais do que por certas referências, os julgava coisa detestável. Ao fim de poucas horas de permanência no mosteiro descobrira logo as secretas murmurações de alguns irmãos intriguistas que repudiavam a Instituição. Era um intrometido, um curioso impertinente que metia o nariz em tudo, e o recente «milagre» do Padre Zossima deixou-o aturdido de perplexidade. Aliocha recordava as idas e vindas daquele farejador que caminhava pelos corredores metendo a cabeça em todos os buracos para escutar e perguntar, na cela do Presbítero e onde quer que fosse que se reunissem mais do que dois monges.
Alexey Fedorovitch não prestava atenção a tais afãs nem pôde observar durante muito tempo as impertinências do monge forasteiro porque quando o Padre Zossima, que se sentia muito fatigado, se retirou para descansar quis ver o noviço antes de adormecer e mandou-o chamar. Chegou a correr e no aposento apenas se encontravam o Padre Paissy, Iosif e Porfiry. O doente abriu os olhos cansados e olhando Aliocha perguntou-lhe:
— Meu filho, não estão à tua espera?
O jovem perturbou-se.
— Não fazes falta nalguma parte? Não é verdade que combinaste com alguém que hoje os veríeis?
— Sim, com meu pai, com meus irmãos e com alguém mais.
— Vês? Pois deves ir. Não te aflijas. Podes estar tranquilo. Não morrerei sem que ouças as minhas últimas palavras. Serão para ti, meu filho. O meu último conselho ser-te-á dirigido. A ti, meu querido, porque sei que gostas de mim. Mas agora cumpre o que prometeste.
Aliocha obedeceu imediatamente, separando-se do mestre, consternado apesar da promessa de que as últimas palavras e o último conselho lhe pertenceriam. Isso enchia-lhe a alma de um arrebatamento celestial. Queria apressar-se, ter acabado já o que havia a fazer na cidade e estar de volta. O Padre Paissy, que saiu com ele da cela, despediu-o com um sermão que acabou por afervorá-lo e o deixou ternamente comovido.
— Não esqueças nunca, jovem — começou sem preâmbulos —, que a ciência deste mundo, que alcançou um grande desenvolvimento, resolveu, especialmente durante o século em que vivemos, analisar tudo o que nos foi revelado nos livros santos. Nada do que era respeitado como sagrado e intangível escapa a esta análise descarnada dos sábios dos nossos dias. Mas não fizeram mais do que analisar em parte e examinar o todo ao de leve, porque o todo continua inalterável perante os seus olhos e as portas do inferno não prevalecerão contra ele. Porventura depois de dezanove séculos não mantém a palavra divina o seu vigor de origem e o seu poder sobre a alma do indivíduo e a massa do povo? Vê-se ainda poderosa e viva na alma dos próprios incrédulos que que querem destruir tudo! Até os que renegaram Cristo e atacam a sua doutrina conformam ao ideal cristão os sentimentos e os atos da sua vida, porque até aqui nem as subtilezas da mente nem os ardores do coração conseguiram apresentar um ideal que exceda em humanidade e em virtude o que Cristo aconselhou ao mundo antigo. Sempre foram grotescos os resultados de qualquer tentativa de substituição. Agora que o teu diretor te envia ao mundo deves ter isto muito presente. Talvez a recordação deste grande dia se associe a estas palavras, saídas do fundo do meu coração para que te sirvam de guia. És jovem e as tentações do século são numerosas e talvez mesmo superiores às tuas forças. Pois bem, já podes partir, querido órfão — terminou o Padre Paissy, fazendo sobre ele o sinal da cruz.
Aliocha afastou-se do mosteiro com a grata impressão de ter encontrado inesperadamente um novo amigo e um carinhoso mestre no austero monge que até ali o havia tratado com secura. Parecia-lhe um legado inapreciável que o Padre Zossima lhe deparava com a sua morte, e em seguida ocorreu-lhe que bem podia obedecer a uma recomendação do Presbítero aquela demonstração de amizade. Aquelas reflexões filosóficas que tão inesperadamente acabava de ouvir revelavam, sem dúvida, um coração ardente e zeloso, preocupado em armar o rapaz para todo e qualquer conflito de tentação e em preservar-lhe a alma juvenil por todos os meios ao alcance da sua imaginação.
Capítulo 2 — Em Casa do Pai
Antes de mais nada, Aliocha encaminhou-se para casa do pai. Lembrava-se de que insistira no dia anterior para que fosse vê-lo sem que Ivan o soubesse. «Porquê?», perguntava-se surpreendido. «Mesmo que meu pai tivesse um segredo para me revelar por que razão o havia de esconder? Não o entendo; terá, por acaso a emoção de ontem embargado as suas palavras?» E suspirou quando Marfa Ignacievna, que lhe abriu o gradil da porta em substituição do marido que estava doente, lhe respondeu que Ivan Fedorovitch saíra havia um par de horas.
— E meu pai?
— Está lá em cima, tomando café — respondeu ela, em tom seco.
Aliocha entrou. O velho, sentado à mesa, calçava sapatilhas e tinha um casaco curto muito usado. Distraía-se passando e repassando sem atenção umas faturas. Encontrava-se só em casa, pois Smerdyakov também saíra naquele dia para fazer compras. Embora se tivesse levantado cedo, procurando mostrar coragem, notava-se que estava cansado e débil. Trazia a testa atada com um lenço encarnado, pois ali se lhe haviam formado grandes cicatrizes durante a noite. Isto e o nariz, enormemente inchado e tumefacto por causa dos pontapés, davam-lhe ao rosto um aspeto maligno e repugnante. Tinha consciência disso e lançou a Aliocha um olhar carregado de ódio.
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