1 ...7 8 9 11 12 13 ...22 — Senhores burgueses e fidalgotes de Paris não sei, croix Dieu !, o que estamos aqui a fazer. É verdade que vejo lá adiante, nessa barraca, umas criaturas que me parecem dispostas à luta! Ignoro se é a isto que os senhores chamam um mistério, mas não acho que seja coisa muito divertida: aquela gente dá à língua mas não passa disso. Há um quarto de hora que estou daqui a ver qual deles é que bate primeiro, e nada; são uns poltrões, e o que sabem é descompor-se. Contratem lutadores de Londres ou de Roterdão e então verão! Davam para aí soco de se ouvir na praça; mas aqueles, causam dó! Ao menos que apresentassem uma dança mourisca ou outra pantomima qualquer! Não foi isto que me disseram; falaram-me de uma festa dos loucos e da eleição de um papa. Nós também temos o nosso papa dos loucos em Gand, e lá nisso não somos pecos, croix de Dieu ! Reúne-se a gente, como aqui; depois, à vez, cada um mete a cabeça por um buraco e faz um esgar aos outros; o que fizer a careta mais feia é eleito papa por aclamação; ora aí está. É muito divertido. Querem os senhores eleger o seu papa à moda da minha terra? Sempre será menos maçador do que ouvir estes tagarelas. Se quiserem também podem vir fazer a sua careta. Que lhes parece, senhores burgueses? Há aqui um bom número de exemplares dos dois sexos, razoavelmente grotescos, que nos farão rir à flamenga; e com os nossos carões, podemos ter a certeza de que não faltarão caretas.
Gringoire responderia, se a sua estupefação, a cólera, a indignação não lhe embargassem a voz. Demais, a moção do fabricante popular fora acolhida com um tal entusiasmo por esses burgueses, lisonjeados por lhes chamarem fidalgotes, que era inútil resistir. Havia uma única coisa a fazer; deixar-se levar pela torrente. Não tendo, como o Agamémnon de Timante a ventura de possuir um manto para cobrir a cabeça, Gringoire cobriu o rosto com as duas mãos.
Entretanto, a peça prosseguira e Gringoire, por seu turno, não desanimava, com verdadeiro júbilo o dizemos. Os atores, incitados por ele ia-os ouvindo. Estava resolvido a esgotar todos os meios, e não perdera completamente a esperança de que o público voltasse, e com ele a atenção. Vendo Quasímodo, Coppenole e o cortejo ensurdecedor do papa dos loucos sair da sala, esse raio de esperança rutilou fulgurantemente. A multidão correu sofregamente após o cortejo.
— Bem — disse consigo —, destes rufiões estou eu livre.
Infelizmente, esses rufiões eram o público. Num abrir e fechar de olhos, a sala esvaziou-se.
Restavam ainda, é certo, alguns espectadores, uns dispersos, outros agrupados em volta dos pilares, mulheres, velhos, crianças, em número suficiente para que não deixasse de haver ruído e tumulto na sala. Alguns estudantes, encavalitados nas janelas, olhavam para a praça.
— Público de sobra para ouvir o resto — pensou Gringoire. — São poucos mas bons, gente fina, gente letrada.
Ao aparecer em cena a Virgem Santa, devia escutar-se uma sinfonia de um efeito magnífico. Não se executou. Os músicos tinham ido com a procissão do papa dos loucos.
— Adiante — disse Gringoire estoicamente.
Acercou-se de um grupo de burgueses, que lhe pareceu estarem a falar da peça. Eis o trecho de conversação que pôde ouvir:
— Conhece o palácio de Navarra, propriedade que foi do senhor de Nemours, mestre Cheneteau?
— Conheço. Em frente da capela de Braque.
— Pois o fisco acaba de o alugar por seis libras e oito soldos parisis, ao ano, ao historiador Guilherme Alexandre.
— Como as rendas estão caras!
— Paciência! — pensou Gringoire suspirando. — Os outros ouvem.
— Rapazes — gritou de súbito um dos foliões das janelas. — A Esmeralda! A Esmeralda! Na praça!
Ao mesmo tempo ouvia-se, fora, um estrondear de aplausos.
— A Esmeralda, que é isto? — disse Gringoire aflitíssimo, de mãos postas. — Ah! Agora são os das janelas!
Voltou-se para a mesa de mármore; interrompera-se o espetáculo. Nesse mesmo instante, Júpiter devia aparecer em cena brandindo o raio. Ora, Júpiter estava em baixo, imóvel.
— Miguel Giborne! — disse o poeta, irritado. — Que fazes aí? Faltas à entrada, sobe!
— Que queres! — disse Júpiter. — Um estudante levou-me a escada.
— Patife! — murmurou Gringoire — E para que levou ele a escada?
— Para ver a Esmeralda — respondeu Júpiter aflitivamente. — Disse «Magnífico! Uma escada que não serve!», e levou-a.
Foi o último golpe. Gringoire recebeu-o resignado.
— Vão para o diabo! — disse aos comediantes. — Se me pagarem contem com a paga.
Bateu então em retirada, de cabeça baixa, mas em último lugar, como o general que se bateu até à última.
E resmungava descendo as tortuosas escadas do Palácio:
— Uma corja de bestas e de estúpidos estes parisienses! Vêm ouvir um mistério e não prestam atenção a uma palavra! Passaram o tempo a olhar de boca aberta para toda a gente, Clopin Trouillefou, o cardeal, Coppenole, Quasímodo, o diabo que os leve! E a mim, a mim, voltam-me as costas! Um poeta recebido como qualquer boticário! Mas diabos me levem se sei o que eles querem dizer com a tal Esmeralda! Que nome!
Livro 2
Capítulo 1 — De Cila para Caribdes
Em janeiro anoitece muito cedo. Escurecia quando Gringoire saiu do Palácio. O cair da tarde foi-lhe propício; tinha pressa em se embrenhar por qualquer viela obscura e deserta, onde pudesse meditar em paz, para que o filósofo colocasse o primeiro bálsamo sobre a ferida do poeta. De resto, a filosofia era o seu único albergue, porque não sabia aonde ir dormir.
Depois do malogro ruidoso da sua tentativa teatral, não tinha coragem de entrar na casa que habitava na rua Grenier-sur-l’Eau, em frente do Porto do Feno, porque, contando com o que o senhor Preboste lhe daria pelo seu epitalâmio, prometera pagar a Guilherme Doulx-Sire, os seis meses de renda que lhe devia, isto é, doze soldos parisis, doze vezes o valor de tudo o que possuía, compreendendo os calções, a gorra e a camisa do corpo. Momentaneamente abrigado sob o postigo da prisão do tesoureiro da Sainte-Chapelle, a refletir no lugar em que passaria a noite, com todas as ruas de Paris à sua disposição, lembrou-se de que, na semana anterior, descobrira na rua da Savaterie, à porta da habitação de um conselheiro do Parlamento, um banco de pedra que servia para montar nas mulas, e que naquela oportunidade, não deixaria de constituir um excelente travesseiro para um mendigo ou para um poeta. Agradeceu à Providência o ter-lhe inspirado esta boa ideia e, dispunha-se a atravessar a praça do Palácio a fim de penetrar no dédalo tortuoso da Cidade, por onde serpeiam essas velhas irmãs, as ruas de Barillerie, da Vieille-Draperie, da Savaterie, da Juiverie, etc., ainda hoje de pé com as suas construções de nove andares, quando viu a procissão do papa dos loucos, que também saía do Palácio e irrompia no pátio, com grandes clamores, grande luz de archotes, e a sua música, a música dele, Gringoire.
Este espetáculo irritou-lhe o amor-próprio ferido; fugiu. Azedava-o, fazia-lhe sangrar a ferida tudo o que viesse recordar a festa do dia, na amarga situação em que o lançara o seu infortúnio de ator dramático.
Quis seguir pela ponte de S. Miguel; corriam crianças aqui e além, brandindo archotes e foguetes.
— Diabos levam o fogo de artifício! — disse Gringoire. Resolveu ir pela Ponte do Change.
Sobre as casas que entestavam com a ponte, flutuavam três bandeiras representando o rei, o delfim e Margarida de Flandres, e seis pequenas bandeirolas, em que eram retratados o duque de Áustria, o cardeal de Bourbon e o senhor de Beaujeu, e Madame Joana de França e o bastardo de Bourbon e nem eu sei que mais, tudo isto iluminado ao clarão das tochas. A turba admirava.
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