1 ...6 7 8 10 11 12 ...22 Desde que o cardeal entrara, Gringoire não descansara um só momento, trabalhando infatigavelmente para salvar o seu prólogo. Começara por incitar os atores que se haviam calado, a prosseguir e a levantar a voz; depois, vendo que ninguém lhes prestava atenção, mandou-os calar; e a interrupção durava, há mais de um quarto de hora já, o que o não impedira de bater o pé, agitadíssimo, interpelando Gisquette e Liénarde e instigando o público que o rodeava a ouvir a continuação do prólogo; debalde, se esforçou. Ninguém tirava a vista de cima do cardeal, da embaixada e do estrado, único centro dessa vasta circunferência de raios visuais. Concorria para isto, com pesar o dizemos, a circunstância de o prólogo começar a aborrecer ligeiramente o auditório, na ocasião em que Sua Eminência interveio, por uma forma tão terrível. No fim de contas, o espetáculo era o mesmo tanto no estrado como na mesa de mármore; o conflito do Trabalho e do Clero, da Nobreza e da Mercancia. E muita gente preferia vê-los assim, bem vivos, bem autónomos, acotovelando-se em carne e osso, nessa embaixada flamenga, nessa corte episcopal, sob a túnica de cardeal, sob a véstia de Coppenole, do que caiados, pintados, ataviados, falando em verso, e por assim dizer, empalhados nas túnicas brancas e amarelas em que Gringoire os envolvera.
Contudo, mal o poeta viu que a ordem se ia restabelecendo, concebeu um estratagema para salvar a situação.
— Cavalheiro — disse para um sujeito gordo, de ar pacato, que lhe estava próximo — e se tornássemos a principiar?
— O quê? — disse o homem.
— O que há de ser! O mistério! — tornou Gringoire.
— Como quiser — replicou o sujeito.
Gringoire não quis ouvir mais, e, como quem faz a festa e atira os foguetes, entrou de gritar confundindo-se o mais possível com a multidão:
— O mistério! Toca a recomeçar o mistério!
— Diabo! — disse Joannes de Molendino. — Que estão eles para ali a berrar? — Com efeito, Gringoire fazia grande algazarra. — Ó rapazes! Então o mistério ainda não acabou? Voltar ao princípio é que não vale.
— Não, não! — bradaram todos os estudantes. — Fora o mistério! Fora!
Gringoire, porém, cada vez gritava mais:
— Ao princípio! Ao princípio!
A berraria chamou a atenção do cardeal.
— Senhor bailio do palácio — disse dirigindo-se a um homem muito alto, todo de preto, postado a distância. — Onde imaginam eles que estão, estes mariolas, para fazerem uma inferneira desta ordem?
O bailio do Palácio era uma espécie de magistrado anfíbio, como que um morcego de ordem judiciária, participando a um tempo do rato e da ave, do juiz e do soldado.
Aproximou-se de Sua Eminência, não pouco receoso do seu desagrado, e explicou-lhe, balbuciando, a inconveniência popular: que o meio-dia chegara antes de Sua Eminência e que os comediantes se tinham visto obrigados a principiar sem esperar Sua Eminência.
O cardeal deu uma gargalhada.
— Era o que o senhor Reitor da Universidade deveria ter feito. Que lhe parece, mestre Guilherme Rym?
— Monsenhor — respondeu Guilherme Rym —, dêmo-nos por muito felizes em ter escapado a metade da comédia. Já não é mau.
— Vossa Eminência dá licença que esses bilhostres continuem? — inquiriu o bailio.
— Continuem, continuem — disse o cardeal. — Que me importa a mim com isso. Enquanto continuam, vou ler o meu breviário.
O bailio aproximou-se do parapeito do estrado e, tendo imposto silêncio com um gesto clamou:
— Burgueses, rústicos e habitantes: para contentar toda a gente, os que querem que se recomece e os que querem que se acabe, Sua Eminência ordena que se continue.
Foi portanto mister que de ambos os campos se resignassem. Mas, tanto o autor como o público nunca o puderam perdoar ao cardeal.
No tablado, as personagens voltaram pois, ao recitativo, e Gringoire confiava que, pelo menos, lhe ouviriam o resto da obra. Ilusão, que, como as outras não tardaria a ser desvanecida; efetivamente, restabeleceu-se o máximo silêncio que se poderia exigir do auditório; Gringoire, porém, não reparara que o estrado não estava ainda cheio, quando o cardeal dera ordem para prosseguir; e, após os enviados flamengos, outras personagens do cortejo foram aparecendo, e os seus nomes e dignidades lançados de permeio com o diálogo da peça, pelo grito intermitente do porteiro, prejudicando consideravelmente o efeito. Imaginem, durante a representação de uma peça, o guincho de um porteiro abrindo entre duas rimas, e por vezes entre dois hemistíquios, parêntesis como estes:
— Mestre Jacques Charmoloue, procurador eclesiástico do rei!
— Jehan de Harly, escudeiro, guarda do ofício de cavaleiro da ronda da cidade de Paris!
— Messire Galiot de Genoilhac, cavaleiro, senhor de Brussac, mestre de artilharia do rei!
— Mestre Dreux-Raguier, fiscal das águas e florestas do rei nosso senhor, em terras de França, Champagne e Brie!
— Messire Luís de Graville, cavaleiro, conselheiro e camareiro do rei, almirante de França, guarda do bosque de Vincennes!
— Mestre Denis Le Mercier, guarda do hospício de cegos de Paris! Etc., etc., etc.
Por fim tornava-se insustentável.
E Gringoire estava tanto mais indignado com o acompanhamento absurdo que assim lhe dificultava o andamento da peça, quanto é certo que se convencera já de que o interesse pela obra aumentava e que lhe faltava apenas ser ouvida. Era, com efeito, difícil de imaginar uma contextura mais engenhosa e mais dramática. As quatro personagens do prólogo carpiam o embaraço mortal em que se encontravam quando Vénus em pessoa se lhes apresentava revestindo uma bela cota de malha, armoriada com a nau do município de Paris. Vinha pessoalmente reclamar o golfinho prometido à mais bela entre as belas. Júpiter, que se ouvia trovejar entre bastidores, patrocinava-lhe a pretensão, e a deusa tinha segura a vitória, isto é, em sentido menos figurado, a mão do senhor Delfim, quando uma criança vestida de damasco branco, entre os dedos uma margarida (personificação transparente da donzela de Flandres) vinha lutar com Vénus. Lance teatral e peripécia. Controvérsia. Vénus, Margarida e os restantes acordavam por fim em reportar-se ao bom julgamento da Virgem. Ainda havia um bom papel, o de D. Pierre, rei da Mesopotâmia: mas, entre tantas interrupções, era difícil perceber-lhe a significação. Tudo isto subira pela escada.
Mas, era irremediável; nenhuma dessas belezas fora sentida, nenhuma compreendida. À entrada do cardeal, dir-se-ia que um fio invisível e mágico desviara todos os olhares da mesa de mármore para o estrado, da extremidade meridional da sala para o lado ocidental. Não havia meio de arrancar o auditório a esse encanto; os olhos não se tiravam dali, e os que iam chegando, os malditos nomes de toda essa gente, a expressão das suas fisionomias, a pompa dos seus trajes constituíam uma diversão constante. Era desolador. Com exceção de Gisquette e Liénarde, que se voltavam de vez em quando, sempre que Gringoire as puxava pelo braço; com exceção do sujeito pacato, ninguém prestava atenção, ninguém fazia caso do pobre auto abandonado. Gringoire apenas via perfis.
Com que amargura assistiu ao lento desmoronar de todo o seu edifício de glória e de poesia! E lembrar-se ele de que esse povo, impaciente por lhe ouvir a obra, estivera a ponto de rebelar-se contra o senhor bailio! E agora que a podia ouvir, nem dela se lembrava já. Esse mesmo espetáculo que começara entre aclamações tão unânimes! Eterno fluxo e refluxo da simpatia popular. E lembrar-se de que, por pouco, essa gente não enforcava os sargentos do bailio! O que ele daria por poder voltar a esse delicioso momento de ventura!
Entretanto, cessou o monólogo brutal do porteiro; já ninguém mais havia para anunciar, e Gringoire respirou; os atores prosseguiam corajosamente. Mas não se lembra de repente mestre Coppenole de se levantar e de impingir, em meio de um recolhimento profundo, esta abominável arenga:
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