Hermann Hesse - Viagem ao Oriente
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- Название:Viagem ao Oriente
- Автор:
- Издательство:Civilização Brasileira
- Жанр:
- Год:1970
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— Eu o compreendo! — exclamou Lucas, agitado. Agora nossa conversa começava a interessá-lo. — Compreendo perfeitamente! É precisamente o que ocorre comigo em relação às minhas experiências de guerra. Sentia havê-las vivido clara e intensamente, suas imagens quase explodiam em minha mente; era como se houvesse em minha cabeça um rolo de filme, com milhares de metros de comprimento. Mas quando sentei-me em minha mesa de trabalho, as aldeias e bosques destruídos, os tremores de terra provocados pelo pesado bombardeio, a conglomeração de torpeza e magnitude, de medo e heroísmo, de estômagos e mentes embrulhados, do terror da morte e do humor sombrio, encontravam-se infinitamente remotos, como se fosse um sonho, sem qualquer relação com a realidade. Você sabe que, apesar de tudo, acabei por escrever minhas memórias de guerra, que são atualmente lidas e discutidas em toda parte. Mas, quer saber de uma coisa? Não creio que dez livros como este, dez vezes melhores e mais precisos que o meu, poderiam apresentar uma imagem real da guerra ao mais sério leitor, se ele próprio dela não houvesse participado. E não foram muitos. Mesmo aqueles que participaram, não a experimentaram por muito tempo. E se fossem muitos — tornariam a esquecer-se dela. O maior desejo de um homem ansioso por experimentar alguma coisa talvez seja dela se esquecer.
Permaneceu por algum tempo em silêncio, parecendo perplexo e perdido em suas reflexões. Suas palavras haviam confirmado minha própria experiência e pensamentos.
Após algum tempo perguntei-lhe cautelosamente: — Então, como foi possível escrever o livro?
Ele meditou por alguns momentos; despertando do devaneio, disse: — Pude fazê-lo apenas porque era necessário. Ou escrevia o livro, ou via-me tomado pelo desespero; era o único meio de escapar da inanidade, do caos e do suicídio. Escrevi o livro sob essa terrível pressão, e isso me trouxe a cura esperada, simplesmente porque fora escrito, não importando que fosse bom ou mau. Era a única coisa que importava. Ao escrevê-lo, não pensei em outros leitores, mas exclusivamente em mim, quando muito em um ou outro companheiro de guerra mais chegado, e não pensava então nos sobreviventes, mas nos que tombaram mortos na guerra. Era como se delirasse ou estivesse louco, cercado de corpos mutilados; foi assim que produzi o livro.
E concluiu nossa primeira conversa, dizendo subitamente: — Perdoe-me, nada mais posso dizer, nem uma só palavra. Não posso realmente. Adeus.
E fez com que me retirasse.
Em nosso segundo encontro achei-o novamente calmo e senhor de si, com o mesmo sorriso irônico nos lábios, embora tratasse meu problema com seriedade e demonstrasse compreendê-lo em toda a extensão. Deu-me algumas sugestões que, no entanto, pareceram-me de certo modo inúteis. Ao final de nossa segunda e última conversa, disse em tom quase casual: — Ouça, você está sempre retornando ao episódio do serviçal Leo. Isto não me agrada; creio que representa um obstáculo em seu caminho. Liberte-se, deixe Leo de lado; acho que isso se tornou para você uma idéia fixa.
Estava a ponto de argumentar que não se podiam escrever livros sem idéias fixas, quando fui surpreendido por uma pergunta inesperada: — Ele se chamava realmente Leo? Minha fronte cobriu-se de suor.
— Sim, — respondi — é claro que se chamava Leo.
— E este era o seu nome de batismo? Gaguejei.
— Não, seu nome de batismo era ... era ... não me recordo. Leo era seu sobrenome. Era assim que todos o chamavam.
Enquanto eu ainda falava, Lucas tomou nas mãos um grosso livro em sua mesa e o folheou. Com impressionante rapidez encontrou e marcou com o dedo um ponto da página aberta. Era um catálogo, e seu dedo indicava o nome Leo.
— Veja — riu ele — nós já temos um Leo. Andreas Leo, Seilergraben, 69A. Não se trata de um nome comum; talvez este homem saiba alguma coisa sobre o seu Leo. Procure-o. Quem sabe não lhe dirá o que você deseja saber. Eu não posso. Se me permite, não tenho muito tempo. Foi um grande prazer vê-lo.
Caminhei vacilante, estupefato e agitado, até que fechou a porta atrás de mim. Ele estava certo, nada mais poderia aconselhar-me.
Naquele mesmo dia fui a Seilergraben, em busca da casa, e perguntei sobre o Sr. Andreas Leo. Morava em um quarto no terceiro andar. Às vezes ficava em casa aos domingos e durante a noite; de dia, saía para trabalhar. Indaguei sobre sua ocupação. Fazia de tudo, disseram-me. Manicurava unhas, praticava quiropodia e massagens; fazia também curas com unguentos e ervas. Nas ocasiões difíceis, quando o trabalho era escasso, ocupava-se no treinamento e tratamento de cães. Retornei decidido a não mais procurar aquele homem, ou então de não lhe revelar minhas intenções. Não obstante, estava bastante curioso para encontrá-lo. Assim sendo, passei os dias seguintes observando sua casa durante minhas freqíientes caminhadas, e hoje lá retornarei, pois até agora não me foi possível encontrar Andreas Leo face a face.
Tudo isso está me levando ao desespero, e ao mesmo tempo deixa-me feliz, ou melhor, agitado e ansioso. Sinto que minha vida e eu mesmo somos novamente importantes, e que vivi em uma grande lacuna. É provável que os clínicos e psicólogos, que atribuem todas as atitudes humanas aos desejos egoístas, estejam certos; não posso compreender como um homem que defende uma causa durante toda a vida, que abandona os prazeres e o bem-estar, que se sacrifica por algo determinado, aja do mesmo modo que um traficante de escravos ou negociante de materiais bélicos, e dissipe seus lucros numa vida de prazeres. Mas eu seria imediatamente derrotado numa discussão com tais psicólogos, pois tratam-se de pessoas que vencem sempre. Assim, tudo o mais que eu tenha considerado bom e justo, coisas pelas quais me sacrifiquei, não passaram de desejos egoístas. Na verdade, a cada dia que passa vejo mais claramente meu egoísmo presente em meus planos de escrever a história da Viagem ao Oriente. De início, pareceu-me que abraçava uma árdua tarefa em nome de uma nobre causa, mas aos poucos chego à conclusão que, através da descrição da jornada, viso o mesmo que o Sr. Lucas com seu livro sobre a guerra: melhor dizendo, desejo salvar minha vida, dando-lhe novamente sentido.
Se pudesse encontrar o caminho! Se pudesse apenas dar o primeiro passo!
— Deixe Leo de lado, liberte-se dele! — exortara-me Lucas. Eu só poderia livrar-me dele destruindo meus pensamentos e a revolta que sentia em meu estômago!
Oh, Deus, ajude-me.
4
TUDO me parece ainda diferente, e ainda não pude definir se foi possível resolver meu problema. Mas ocorreu um fato que jamais esperara — ou talvez o esperasse, antegozasse, desejando-o e temendo-o ao mesmo tempo. E, no entanto, ainda me parece estranho e improvável.
Fui muitas vezes a Seilergraben, talvez mais de vinte, durante o período que julguei ser-me favorável, e geralmente passava pelo 69A, dizendo para mim mesmo: — Tentarei mais uma vez, se nada acontecer, não volto mais. — Mas lá estava eu de novo, e, dois dias atrás, consegui satisfazer meus anseios. E como os satisfiz!
Ao aproximar-me da casa, com cujas rachaduras e fissuras do reboco cinza-esverdeado já estava familiarizado, ouvi o assobio de uma canção popular, vindo da janela de cima. De nada sabia ainda, mas permaneci na escuta. A música despertou lembranças adormecidas em minha mente. Era uma música banal, mas lindamente executada, com notas leves e agradáveis, estranhamente puras, tão alegre e natural como as canções dos pássaros. Detive-me para escutá-la, como que encantado, e ao mesmo tempo comovido, sem que nenhum pensamento me desviasse dela. E se algum houve, devo ter julgado que se tratava de um homem muito feliz e afável que assobiava daquela maneira. Durante alguns minutos senti-me pregado ao solo. Um velho com o rosto doentio e encovado passou por mim. Viu-me parado e deteve-se também para ouvir por um breve momento, e sorriu com compreensão ao afastar-se. Seu comovente olhar envelhecido pareceu dizer-me:
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