Hermann Hesse - Viagem ao Oriente

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Viagem ao Oriente: краткое содержание, описание и аннотация

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Encontrávamos com freqiiência, na Suábia, em Bodensee, na Suíça, por toda parte, pessoas que nos compreendiam ou que, de certo modo, sentiam-se gratas pela existência da Confraria, de nós e de nossa Viagem ao Oriente. Por entre as linhas férreas e ladeiras de Zurique encontramos a Arca de Noé, guardada por velhos cães que atendiam todos pelo mesmo nome, e que foram conduzidos sobre as águas rasas de um calmo período por Hans C. até o descendente de Noé, o amigo das artes. Seguimos para Winterthur, penetrando no Armário Mágico de Stocklin; fomos hóspedes do Templo Chinês, com seus vasos de incenso reluzindo sob a Ma j a de bronze, onde o rei negro tocava docemente sua flauta, no tom vibrante do gongo do templo. Encontramos, no sopé das Montanhas do DoL Suon Mali, uma colônia do Rei do Sião, onde, por entre os Budas de pedra e bronze, oferecemos libações e incenso em agradecimento à hospedagem.

Uma das mais belas experiências ocorreu durante as celebrações da Confraria em Bremgarten; o círculo de magia cercou-nos então de maneira envolvente. Recebidos por Max e Tilli, os senhores do castelo, ouvimos Othmar executando Mozart no grandioso piano do imenso salão. Os jardins estavam povoados de papagaios e outros pássaros falantes. A fada Armida cantava à beira da fonte. Com os fartos cabelos anelados, a cabeça do astrólogo Longos inclinava-se ao lado da amada figura de Henry de Ofterdingen. Os pavões faziam-se ouvir no jardim, e Luís conversava em espanhol com o Gato de Botas. Hans Resom, agitado após espreitar no jogo de cabra-cega da vida, jurava fazer uma peregrinação ao túmulo de Carlos, o Grande. Este foi um dos períodos de ouro de nossa viagem; acompanhava-nos um fluxo de magia que tudo purificava. Os habitantes ajoelhavam-se para adorar a beleza, o senhor do castelo recitou um poema que narrava nossos feitos do dia precedente. Os animais da floresta rondavam o muro do castelo, e peixes cintilavam nas águas do rio, em cardumes agitados, alimentando-se de bolos e vinho.

O ponto culminante dessas experiências, que merece realmente ser narrado, revestiu-se de uma característica que revela seu espírito. Talvez minha descrição pareça pobre e até tola, mas todos os que festejaram os dias passados em Bremgarten confirmariam os menores detalhes e acrescentariam os seus, ainda mais belos. Jamais esquecerei o brilho mortiço da cauda dos pavões sob o luar, surgindo entre as árvores altaneiras, nem as sereias que emergiam cintilantes, com o corpo prateado, nas margens sombrias, por entre as rochas. Don Quixote, de pé sob a castanheira ao lado da fonte, em sua primeira vigília noturna, enquanto as derradeiras velas romanas do espetáculo pirotécnico caíam suavemente sob as torres do castelo, e meu companheiro Pablo, ornado de rosas, tocava o órgão persa para as donzelas. Mas — ah! — quem poderia imaginar que o círculo de magia seria rompido tão cedo! Que todos nós — e também eu, até eu — nos perderíamos nos insondáveis desertos da realidade planejada, exatamente como os funcionários e ajudantes de lojas que, após uma festa ou um passeio dominical, voltam à rotina de mais um dia de trabalho.

Nenhum de nós abrigava tais pensamentos àquela época. O aroma dos lilazes nas torres do castelo de Bremgarten penetrava em meu quarto. Podia ouvir o rio correndo por sob as árvores. Saltei a janela e penetrei na noite, embriagado de felicidade e ternura. Passei furtivamente pelo cavaleiro de guarda e os convivas do banquete, alcançando a borda do rio com suas mansas águas, e as alvas e reluzentes sereias. Fui por elas transportado à sua fria, enluarada e cristalina morada, onde brincavam languidamente com coroas e correntes douradas de seu tesouro. Tive a sensação de haver passado meses sob aquelas profundezas cintilantes; conrudo, ao subir à tona e nadar para a margem, inteiramente revigorado, ainda podia ouvir Pablo tocando o órgão no jardim, e a lua ainda brilhava alta no céu. Vi Leo que brincava com dois poodles brancos, o rosto infantil irradiando felicidade. Encontrei Longos sentado no bosque. Escrevia caracteres gregos e hebraicos em um livro que colocara sobre os joelhos; das letras pareciam saltar dragões e serpentes coloridas. Ele não me fitou; continuou pintando, absorto na escrita serpeante. Permaneci longo tempo observando o livro por sobre seus ombros curvados. Vi as serpentes e os dragões que nasciam de suas mãos turbilhonar e desaparecer em silêncio, na direção do escuro bosque. — Longos, meu prezado amigo! -murmurei. Mas ele não me ouviu, tão distante estava seu mundo do meu. Um pouco além, sob as árvores iluminadas pelo luar, Anselmo passeava com uma íris nas mãos; fitava, sorrindo, absorto em seus pensamentos, o purpúreo cálice da flor.

Voltei a impressionar-me de maneira um tanto dolorosa com um fato que observara diversas vezes durante a viagem, sem que pudesse refletir profundamente a respeito, nos dias que passamos em Bremgarten. Havia entre nós muitos artistas, pintores, músicos e poetas. O ardente Klingsor, o irrequieto Hugo Wolf, o taciturno Lauscher e o alegre Brentano lá estavam — mas, apesar de pessoas agradáveis e entusiasmadas, notei que, sem exceção, seus personagens imaginários eram mais vivazes, belos, felizes e por certo mais perfeitos e reais do que os poetas e seus próprios criadores. Pablo irradiava inocência e contentamento com sua flauta, mas seu poeta desvaneceu-se como uma sombra na direção do rio, quase transparente sob o luar, buscando a solidão.

Hoffman, cambaleante em virtude da bebida, corria por entre os convidados, falando muito, com sua figura pequena e travessa, também me parecendo, como os demais, um tanto irreal, quase ausente, como se não fosse palpável e verdadeiro. O arquivista Lindhorst, simulando uma luta com os dragões, lançava fogo pelas narinas, como um máquina a vapor. Indaguei a Leo, o criado, por que os artistas geralmente pareciam semi-existir, ao passo que suas obras permaneciam tão incontestavelmente vivas. Leo fitou-me com surpresa. Deixou então escapar-lhe das mãos o cãozinho com que brincava e respondeu: — Acontece o mesmo com as mães. Ao gerarem os filhos, amamentá-los e torná-los belos e fortes, elas próprias passam à insignificância, e ninguém mais por elas se inquieta.

— Mas isto é muito triste — disse eu, sem refletir profundamente sobre o fato.

— Não creio que seja mais triste que tudo o mais — retrucou Leo. — Talvez seja triste e ao mesmo tempo belo. A lei assim o determina.

— A lei? — indaguei, curioso. — De que lei está falando, Leo?

— A lei de servir. Quem desejar viver muito deve servir, mas aquele que desejar governar não viverá por longo tempo.

— Então por que tantas pessoas lutam para governar?

— É que elas não compreendem. São poucos os que nascem para governar: estes vivem sempre felizes e saudáveis. Todos os demais que se tornam senhores através do esforço morrem sem nada.

— Como nada, Leo?

— Em um hospital, por exemplo.

Não consegui compreendê-lo muito bem, mas suas palavras ficaram-me na lembrança e me fizeram julgar que Leo sabia todas as coisas, talvez mais do que nós, ostensivamente seus senhores.

2

CADA um de nós, participantes desta inesquecível jornada, teve suas explicações quanto ao motivo pelo qual o fiel Leo decidiu abandonar-nos subitamente, em meio ao perigoso desfiladeiro do Morbio Inferior. Foi muito mais tarde que comecei a suspeitar vagamente, e analisar as circunstâncias e o sentido mais profundo do fato. Pareceu-me também que tal acontecimento, aparentemente casual, mas na realidade de extrema importância, ou seja, o seu desaparecimento, não foi absolutamente um acidente, mas um elo na cadeia de fatos pela qual o eterno inimigo procurava levar o infortúnio à nossa jornada. Naquela fria manhã de outono, em que demos pela falta de Leo, e na qual seriam infrutíferas as tentativas de busca, não fui o único a experimentar, pela primeira vez, uma sensação de desgraça iminente através de um destino ameaçador.

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