Debruçou-se do seu lugar ao canto, tirou um bolo de cima dos tijolos e o fez saltar nas mãos.
— Agora também eu roubei um bolo.
— Então queimaste os dedos. E quando estiveres morto de fome nessas águas ermas, entre as ilhas lá de longe, vais pensar nesse bolo e dizer: «Ah se eu não tivesse roubado aquele bolo, bem o podia comer agora, ai de mim!» E eu vou comer o do meu irmão que é para ele ficar a morrer de fome contigo.
— E assim se mantém o Equilíbrio — fez notar Gued enquanto pegava num bolo quente e meio cozido e se punha a mastigá-lo, o que a fez soltar uma risada e engasgar-se. Mas logo, pondo-se de novo muito séria, disse:
— Só queria perceber realmente o que me dizes. Sou muito estúpida.
— Irmãzinha — disse Gued —, eu é que não tenho jeito para explicar. Se tivéssemos mais tempo…
— Vamos ter mais tempo — retorquiu Mil-em-rama. — Quando o meu irmão voltar para casa, voltarás com ele e ficas cá pelo menos durante algum tempo, não ficas?
— Se puder — respondeu ele mansamente.
Houve uma pequena pausa. Depois Mil-em-rama perguntou, olhando o harrekki que trepava de regresso ao seu poleiro:
— Diz-me só uma coisa, se não for um segredo. Que outros grandes poderes existem, além da luz?
— Não é segredo. Todo o poder é apenas um na sua fonte e no seu final, creio eu. Anos e distâncias, estrelas e candeias, água e vento e feitiçaria, a perícia na mão de um homem e a sabedoria na raiz de uma árvore, todos surgem em conjunto. O meu nome, o teu e o nome-verdadeiro do Sol, ou uma nascente de água, ou unia criança que não nasceu ainda, tudo são sílabas da grande palavra que está a ser muito lentamente pronunciada pelo brilho das estrelas. Não há outro poder. Não há outro nome.
Parando o movimento da faca sobre a madeira que estava a trabalhar, Marre perguntou:
— Então e a morte?
A rapariga escutava atentamente, o negro cabelo a brilhar na cabeça inclinada.
— Para que uma palavra seja pronunciada — respondeu Gued lentamente — é necessário que haja silêncio. Antes e depois. — E logo, levantando-se, acrescentou: — Mas eu não tenho o direito de falar destas coisas. A palavra que por direito me cabia dizer, disse-a mal. Melhor é que me reduza ao silêncio. Não voltarei a falar. Talvez não haja verdadeiro poder senão a treva.
E, deixando o lugar junto ao lume e o calor da cozinha, envergou o manto e saiu sozinho para as ruas, sob o chuvisco frio do Inverno.
— Há uma maldição sobre ele — disse Marre, a vê-lo sair, com uma expressão algo temerosa no rosto.
— Julgo que esta viagem que ele vai empreender o pode conduzir à morte — disse a rapariga —, e ele teme isso, mas no entanto vai.
Ergueu a cabeça como se observasse, através das chamas vermelhas do lume, o percurso de um barco que chegara sozinho sobre os mares de Inverno e partira de novo, singrando os mares solitários. Depois, por um momento, os seus olhos encheram-se de lágrimas, mas nada mais disse.
Vetch regressou a casa no dia seguinte e foi apresentar as suas despedidas aos notáveis de Ismay, que não tinham o mínimo desejo de o ver partir para o mar no meio do Inverno, numa demanda mortal que nem sequer era sua. Mas por muito que o censurassem, não havia absolutamente nada que pudessem fazer para o impedir. Já farto daqueles anciãos que o importunavam com as suas críticas, Vetch disse-lhes:
— Sou vosso, pela origem, pelos costumes e pelas obrigações a que me comprometi perante vós. Sou o vosso feiticeiro. Mas já é tempo que recordeis que, embora eu seja um servidor, não sou o vosso servo. Quando estiver livre para voltar, voltarei. Até lá, adeus.
Ao nascer do dia, com a luz acinzentada a erguer-se do mar para leste, os dois jovens partiram no Vê-longe do porto de abrigo de Ismay, erguendo sob o vento norte uma vela castanha de um tecido bem forte. No cais, Mil-em-rama ficou a vê-los partir, tal como as esposas e as irmãs ficam em todas as costas de Terramar, vendo os seus homens partir para o mar, e não acenam com as mãos, nem erguem a voz em adeus, mas ficam de pé, recolhidas nos seus mantos com capuz, cinzentos ou castanhos, nessas costas que, vistas do barco, se vão tornando cada vez mais pequenas, enquanto cresce a extensão de água entre este e aquelas.
Já o porto lhes desaparecera da vista e os olhos pintados na proa do Vê-longe, molhados pelas vagas, abriam-se sobre mares cada vez mais vastos e desolados. Em dois dias e duas noites os companheiros fizeram a travessia entre Iffish e a Ilha de Soders, percorrendo cem milhas de mau tempo e ventos contrários. Só por breve tempo ali aportaram, o suficiente para voltar a encher um odre de água e comprar um tecido alcatroado que protegesse alguns dos seus haveres, reunidos no fundo do barco sem tombadilho, da água salgada e da chuva. Não tinham tratado antes disso porque, em geral, um feiticeiro ocupa-se desses pequenos pormenores por meio de sortilégios, o gênero mais inferior e comum de sortilégios. Na realidade, pouca mais magia é precisa para tornar doce a água do mar e assim evitar a maçada de transportar água potável. Mas Gued parecia muito pouco inclinado a usar a sua arte ou a deixar que Vetch o fizesse. Limitou-se a dizer «É melhor não», e o amigo não discutiu nem fez perguntas. Porque, enquanto o vento lhes enfunava a vela, ambos tinham sentido um muito mau prenúncio, frio como a invernia. Porto de abrigo, cais, paz, segurança, tudo isso ficara para trás. Tinham-lhe voltado as costas. Seguiam agora uma via em que todos os acontecimentos eram perigosos e nenhum ato era destituído de significado. Na rota que tinham tomado, pronunciar a menor dos encantamentos poderia mudar o acaso, abalar o equilíbrio do poder e dos fados, pois dirigiam-se agora para o próprio centro desse equilíbrio, para o lugar onde luz e treva se encontram. E aqueles que assim viajam não pronunciam uma única palavra imponderadamente.
Fazendo-se de novo ao mar e rodeando as costas de Soders, onde campos brancos de neve se perdiam ao longe nos montes enevoados, Gued dirigiu o barco de novo para sul e entraram em águas onde os grandes comerciantes do Arquipélago nunca vinham, a orla mais longínqua da Estrema.
Vetch não fez qualquer pergunta acerca da rota que seguiam, sabendo que Gued não a escolhia, seguindo apenas para onde tinha de seguir. Com a Ilha de Soders a tornar-se pequena e indistinta atrás deles, as ondas silvando e batendo sob a proa e a grande planície cinzenta da água a rodeá-los totalmente até ao horizonte, Gued perguntou:
— Que terras ficam para a frente, seguindo este rumo?
— Mesmo na direção sul, não há quaisquer terras. Para sudeste, percorre-se um longo caminho e pouco se encontra. Pelimer, Kornay, Gosk e Astowell, a que também chamam Última Terra. Para além disso, é o Alto Mar.
— E para sudoeste?
— Rolameny, que é uma das nossas ilhas da Estrema Leste, e algumas ilhotas em redor. Depois nada até chegarmos à Estrema Sul e aí tens Rud e Tume, mais a Ilha da Orelha onde os homens não vão.
— Nós, talvez — disse Gued, amargamente.
— Preferia que não — contrapôs Vetch. — Dizem que é uma bem desagradável parte do mundo, cheia de ossadas e portentos. Os marinheiros afirmam que das águas junto às ilhas da Orelha e de Além-Sorr se vêem estrelas que não podem ser vistas em mais lado nenhum e a que nunca foram dados nomes.
— Sim, havia um marinheiro no barco que me levou a Roke pela primeira vez que falava disso. E contava histórias do Povo das Jangadas nas zonas mais afastadas da Estrema Sul que só vão a terra uma vez por ano, cortar grandes toros para as suas jangadas, e no resto do ano, todos os seus meses e dias, vogam à deriva nas correntes do oceano, fora da vista de qualquer terra. Gostaria de ver essas aldeias de jangadas.
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