— Creio… — retorquiu Gued, estendendo as mãos para o lume como se um frio interior o tivesse percorrido — creio que não. Está agora ligada a mim como eu a ela. Não pode libertar-se de mim o suficiente para aprisionar qualquer outro homem e esvaziá-lo de vontade e de ser, como fez a Skiorh. Pode possuir-me. Se alguma vez eu voltar a enfraquecer e a tentar escapar-lhe, se se quebrar o elo entre nós, possuir-me-á. E, no entanto, quando a segurei com toda a força que tinha, tornou-se um mero vapor e escapou-me… Portanto, voltará a fazê-lo e, contudo, não poderá realmente escapar, pois posso sempre voltar a encontrá-la. Estou ligado àquela coisa imunda e cruel e sempre o estarei, a não ser que consiga aprender a palavra que a domina, o seu nome.
Cismando, o amigo perguntou:
— Mas há nomes no reino das sombras?
— Guencher, o Arquimago, disse-me que não. Mas a opinião do meu mestre Óguion é diferente.
— «Infindáveis são as discussões dos magos» — citou Vetch, com um sorriso que tinha muito de esgar.
— Aquela que servia o Antigo Poder em Osskil jurou que a Pedra me diria o nome da sombra, mas a isso dou pouca fé.
No entanto, houve também um dragão que se ofereceu para trocar esse nome pelo seu, para se livrar de mim. E tem-me passado pela cabeça que, onde os magos discutem, talvez os dragões sejam sábios.
— Sábios, sim, mas cruéis. Mas que dragão vem a ser esse? Não me disseste que tinhas andado a falar com dragões desde a última vez que nos vimos.
Ficaram a conversar até tarde, nessa noite, e embora voltassem sempre ao amargo assunto do que Gued tinha pela frente, o prazer de estarem juntos a tudo se sobrepôs, porque o afeto entre ambos era forte e inabalável, e nem o tempo nem o acaso poderiam alterá-lo.
De manhã, Gued acordou sob o teto do amigo e, ainda ensonado, sentiu um grande bem-estar, como se se encontrasse num lugar totalmente defendido de perigos e males. Durante todo o dia, um pouco dessa paz sonhada permaneceu colado aos seus pensamentos e encarou-o, não como um bom prenúncio, mas como uma oferta. Parecia-lhe quase evidente que, ao deixar aquela casa, iria também deixar o último abrigo que lhe era dado conhecer e assim, enquanto aquele pequeno sonho durasse, seria feliz nele.
Tendo assuntos a tratar antes de partir de Iffish, Vetch dirigiu-se a outras aldeias da ilha com o rapaz que o servia como aprendiz de feiticeiro. Gued ficou com Mil-em-rama e o irmão desta, chamado Marre, nome que ali se dá à torda-mergulheira, e que em idade ficava entre ela e Vetch. Não parecia ser muito mais que um rapazinho, porque não havia nele qualquer dom ou sinal de poder mágico e nunca estivera em lado algum, a não ser Iffish, Tok e Holp, levando uma vida fácil e sem problemas. Gued observava-o com espanto e alguma inveja, tal como o rapaz observava Gued. Tanto para este como para Marre parecia muito estranho que o outro, sendo tão diferente, tivesse, no entanto, a mesma idade, dezenove anos. Gued maravilhava-se com o fato de alguém que já vivera dezenove anos poder ser tão descuidado. Ao admirar o rosto agradável e jovial de Marre, sentia-se pessoalmente esgalgado e desagradável à vista, sem adivinhar sequer que Marre lhe invejava até as cicatrizes que lhe marcavam o rosto, pensando que seriam os vestígios das garras de um dragão e a verdadeira runa e sinal de um herói.
Os dois jovens eram, pois algo tímidos um com o outro mas, quanto a Mil-em-rama, em breve perdeu o temor respeitoso que sentira por Gued, na medida em que estava na sua própria casa e como senhora dela. Gued era muito simpático para com ela e muitas foram as perguntas que ela lhe fez, porque Vetch, lamentava-se ela, nunca lhe contava nada. Manteve-se muito atarefada durante aqueles dois dias, fazendo bolos secos de trigo para os viajantes levarem, embrulhando peixe e carne secos e outras vitualhas do mesmo gênero para aprovisionarem o barco, até que Gued lhe disse que parasse, pois não estava nos seus planos navegar sem paragem até Selidor.
— Onde fica Selidor?
— Muito longe daqui, na Estrema Oeste, onde os dragões são tão comuns como ratos.
— Então o melhor é ficar na Estrema Leste, onde os dragões são pequenos como ratos. Então aí tens a tua carne. Tens a certeza de que chega? Escuta, eu não percebo. Tu e o meu irmão são dois grandes feiticeiros. Acenam com a mão, resmungam umas palavras e a coisa aparece feita. Então por que é que ficam com fome? No mar, quando chega a hora da ceia, por que é que não dizem «Empada de carne!» e a empada aparece e vocês comem-na?
— Bem, podíamos fazer isso. Mas não temos grande vontade de comer as palavras, como se costuma dizer. «Empada de carne!» não é mais que palavras, no fim de contas… Podemos torná-la bem cheirosa, saborosa e até capaz de nos encher, mas continua a ser palavras. Engana o estômago e não dá forças a quem tem fome.
— Então os feiticeiros não são cozinheiros — interpôs Marre, que estava sentado do outro lado da lareira da cozinha, a gravar a tampa de uma caixa de madeira preciosa. Era, de seu ofício, entalhador, se bem que não muito zeloso.
— Nem os cozinheiros são feiticeiros, ai de mim — disse Mil-em-rama, pondo-se de joelhos a ver se a última fornada de bolos que coziam nos tijolos da lareira já estaria a tomar cor. — Mas ainda não percebo, Gavião. Já vi o meu irmão, e até o aprendiz, a iluminar um sítio escuro só por pronunciarem uma palavra. E a luz resplandece, é brilhante, não é uma palavra mas uma luz autêntica que nos pode alumiar os passos.
— Sim — respondeu Gued. — A luz é um poder. Um grande poder pelo qual existimos, mas que existe para além das nossas necessidades, em si própria. A luz do Sol e a luz das estrelas são tempo e tempo é luz. Sob a luz do Sol, nos dias e nos anos, a vida existe. Num lugar escuro, a vida pode invocar a luz, dizendo o seu nome. Mas, geralmente, quando vês um feiticeiro invocar ou chamar pelo nome alguma coisa, algum objeto que faz aparecer, isso já não é o mesmo. Não está a invocar um poder maior que ele próprio, e o que aparece é apenas uma ilusão. Invocar uma coisa que não se encontra de modo algum ali, chamá-la dizendo o seu nome-verdadeiro, isso é grande mestria e não se usa levianamente. Nem meramente por causa da fome. Mil-em-rama, o teu dragãozinho roubou um bolo.
Mil-em-rama estivera tão atenta a ouvir, com os olhos pregados em Gued enquanto ele falava, que não vira o seu harrekki descer sorrateiramente do seu quente poleiro na pega da chaleira suspensa em cima do fogo e deitar as garras a um bolo de trigo maior que ele próprio. A rapariga agarrou na criaturinha coberta de escamas, colocou-a num joelho e começou a dar-lhe pedacinhos de bolo, enquanto ponderava o que Gued lhe dissera.
— Portanto, tu nunca irias invocar uma empada de carne verdadeira, não fosses perturbar aquilo de que o meu irmão está sempre a falar… esqueço-me do nome…
— Equilíbrio — replicou Gued sobriamente, pois bem via que ela estava a tratar o assunto muito a sério.
— Sim, mas quando naufragaste, saíste daquele lugar num barco que era quase todo feito de encantamentos e ele não metia água. Também era uma ilusão?
— Bem, em parte era uma ilusão porque não me sinto seguro vendo o mar através de grandes buracos no meu barco, de maneira que os remendei tendo em vista o aspecto da coisa. Mas a robustez do barco não era ilusão nem invocação. Era antes feita com outro gênero de arte, um encantamento de prender. A madeira estava presa num todo, numa coisa inteira, um barco. O que é um barco senão uma coisa que não deixa entrar água?
— Já tive de tirar água de alguns que deixavam — disse Marre.
— Pois, e o meu também deixava, a não ser que eu estivesse constantemente a refazer a encantamento.
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