Seguiram juntos pela rua escura e Gued comentou enquanto caminhavam:
— Em Gont diz-se que as mulheres gontianas são corajosas, mas nunca ali vi nenhuma donzela que usasse um dragão como pulseira.
A isto, Mil-em-rama riu-se e logo retorquiu:
— Isto é só um harrekki. Não há harrekkis em Gont?
Depois ficou envergonhada por momentos e voltou a tapar os olhos.
— Não, nem dragões. Então essa criatura não é um dragão?
— Um pequenino, que vive nos carvalhos e se alimenta de vespas, minhocas e ovos de pardal. Não cresce mais que isto. Oh, Senhor, o meu irmão falou-me tantas vezes do bicho que tinhas, aquele selvagem, o otaque… Ainda o tens?
— Não. Já não.
Vetch voltou-se para ele como para fazer uma pergunta, mas reteve-se e nada perguntou até muito mais tarde, quando ambos se encontraram sozinhos, à beira do buraco do lume, em pedra, da casa de Vetch.
Se bem que fosse o feiticeiro principal de toda a ilha de Iffish, Vetch escolhera para seu lar Ismay, a pequena vila onde nascera, vivendo com o irmão e a irmã mais novos. O pai vivera do comércio marítimo e fora pessoa de alguns meios, sendo a casa espaçosa e bem construída, com grande abundância de louças, tecidos finos e vasilhas de bronze e latão em prateleiras e armários trabalhados. A um canto da sala principal encontrava-se uma grande harpa taoniana, a outro, um tear para tapeçaria de Yarrow, com a armação embutida de marfim. Ali, Vetch, apesar das suas calmas e simples maneiras, era não só um poderoso feiticeiro, mas ainda um senhor na sua própria casa. Havia um par de velhos servidores, prosperando com a fortuna da casa, o irmão, um moço jovial, e Mil-em-rama, rápida e silenciosa como um peixinho, que serviu a ceia aos dois amigos, comeu com eles, ouvindo-os falar, e depois se retirou discretamente para o seu quarto. Ali, todas as coisas tinham boas fundações, eram pacíficas e seguras. E Gued, olhando em redor de si para a sala iluminada pelo fogo, disse:
— É assim que um homem deve viver. E suspirou.
— Bom, é uma maneira — disse Vetch. — Há outras. Agora, rapaz, diz-me, se podes, que coisas se aproximaram de ti e de ti se afastaram desde a última vez que falamos, há dois anos. E diz-me em que jornada vais, pois bem vejo que, desta vez, não irás ficar muito tempo conosco.
Gued disse-lhe e, quando ele acabou, Vetch ficou por longo tempo silencioso, a ponderar o que ouvira. Depois disse:
— Irei contigo, Gued.
— Não.
— Acho que sim.
— Não, Estarriol. Isto não é tarefa nem desgraça que te incumba. Sozinho comecei este percurso maléfico, sozinho lhe darei fim. Não quero que mais ninguém tenha de sofrer por isso e tu menos que qualquer outro, tu que tentaste travar a minha mão e impedir-me a ação maléfica logo no início de tudo isto, Estarriol…
— O orgulho foi sempre dono do teu espírito — disse-lhe o amigo sorrindo, como se falassem de algum assunto de somenos importância para ambos. — Agora, pensa. É a tua demanda, certamente, mas se a demanda não for a bom fim, não deveria haver um outro contigo que trouxesse aviso para o Arquipélago? Porque, então, a sombra teria um poderio terrível. E se derrotares a coisa, não deveria estar outro contigo que viesse relatar tudo ao Arquipélago, para que o Feito fosse conhecido e celebrado em canto? Sei que não posso ser de qualquer utilidade para ti. Mas, mesmo assim, penso que devia ir contigo.
Instado desta maneira, era impossível a Gued recusar o amigo, mas disse:
— Não devia ter ficado aqui hoje. Sabia-o, mas fiquei.
— Os feiticeiros não se encontram por acaso, rapaz — disse Vetch. — E afinal, como há pouco disseste, eu estava contigo no princípio da tua jornada. Está, pois, certo que a acompanhe até ao final.
Lançou mais lenha no lume e, durante algum tempo, deixaram-se ficar a olhar para o fogo. Por fim, Gued quebrou o silêncio para dizer:
— Há alguém de quem não voltei a ouvir falar desde aquela noite no Cabeço de Roke e, na Escola, não tive coragem para perguntar por ele. Por Jaspe, quero dizer.
— Nunca chegou a receber o seu bordão. Deixou Roke nesse mesmo Verão e foi para a Ilha de O, para ser mágico na casa do Senhor, em Otokne. Para além disso, não sei mais nada acerca dele.
Voltaram a ficar em silêncio, olhando o fogo e gozando (já que a noite era agreste) o calor nas pernas e no rosto, sentados no rebordo largo da cova do fogo, com os pés quase dentro das brasas.
Por fim, em voz muito baixa, Gued disse:
— Há uma coisa que temo, Estarriol. E temo-a mais se fores comigo quando eu partir. Lá, nas Mãos, no fundo da calheta voltei-me contra a sombra, que estava ao alcance das minhas mãos, e agarrei-a… tentei agarrá-la. E não havia nada que eu pudesse segurar. Não foi possível derrotá-la. Fugiu, segui-a. Mas isso pode acontecer e voltar a acontecer outra vez. Não tenho poder sobre a coisa. Não haverá talvez morte nem triunfo no final desta demanda, nada para ser cantado, nenhum fim. Pode acontecer que eu tenha de passar a minha vida a correr de mar em mar e de terra em terra, numa infindável e vã empresa, a sombra de uma demanda.
— Arreda! — exclamou Vetch, ao mesmo tempo que voltava a mão esquerda no gesto que afasta a má possibilidade de que se falou. Apesar de todos os seus sombrios pensamentos, aquilo trouxe um sorriso aos lábios de Gued, pois é um encantamento mais própria de crianças que de um feiticeiro. Em Vetch continuava a haver aquela grande inocência de camponês. E, no entanto, ele era também penetrante, sagaz, com a capacidade de ir direito ao cerne de qualquer questão. E Vetch voltou a falar. — Esse é um pensamento soturno e, espero bem, falso. Julgo, pelo contrário, que aquilo que vi começar, posso ver acabar. De alguma maneira, aprenderás a sua natureza, o seu ser, o que aquilo é, e assim o chegarás a agarrar, a sujeitar, a vencer. Se bem que essa seja uma bem difícil questão, o que aquilo poderá ser… Aí está uma coisa que me preocupa, não conseguir percebê-la. Ao que parece, a sombra tomou agora a tua forma, ou pelo menos uma espécie de semelhança contigo, tal como a viram em Vemish e como eu a vi aqui em Iffish. Como pode isso ser? E porquê? E por que é que nunca aconteceu no Arquipélago?
— Costuma dizer-se: «As regras não são as mesmas, nas Estremas.»
— Pois dizem e é bem verdade, posso afirmá-lo. Há bons encantamentos que eu aprendi em Roke e que aqui não têm poder ou saem todas ao contrário. E há outras que resultam aqui e de que nem ouvi falar em Roke. Cada terra tem os seus próprios poderes e quanto mais nos afastamos das Terras Interiores, tanto menos podemos avaliar esses poderes e como dominá-los. Mas não penso que tenha sido só isso a produzir esta mudança na sombra.
— Nem eu. Penso que, quando deixei de fugir e me voltei contra ela, essa ação da minha vontade sobre ela deu-lhe forma, embora essa mesma ação a impedisse de se apoderar da minha força. Todas as minhas ações encontram eco nela. É a minha criatura.
— Em Osskil disse o teu nome e assim impediu qualquer feitiçaria que pudesses ter usado contra ela. Mas então, nas Mãos, por que não voltou a fazer o mesmo?
— Não sei. Talvez seja só da minha fraqueza que ela consegue a força para falar. E é quase com a minha língua que fala, pois senão como teria sabido o meu nome? Sim, como teria sabido o meu nome? Tenho dado voltas à cabeça com isto, por todos os mares que naveguei desde que saí de Gont e não encontro resposta. Talvez ela não consiga falar de todo, na sua própria forma ou ausência dela, mas só com uma língua de empréstimo, como um gebbeth. Não sei.
— Então terás de redobrar de cuidado se a voltares a encontrar em forma de gebbeth.
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