Antes de cair a noite, avistou ao longe, à sua esquerda, a longa e imprecisa linha costeira de um grande território que deveria ser Karego-At. Encontrava-se precisamente nas rotas marítimas daquela gente bárbara, de pele branca. Manteve-se vivamente atento à presença de qualquer navio longo ou galé karguianos, ao mesmo tempo que recordava, enquanto ia navegando no avermelhado do entardecer, aquela manhã da sua adolescência na aldeia de Dez Amieiros, os guerreiros emplumados, o fogo, a bruma. E ao pensar naquele dia viu de repente, com um baque no coração, como a sombra o iludira com a sua própria ilusão, trazendo aquela bruma a rodeá-lo no mar como se a trouxesse do seu próprio passado, cegando-o para o perigo e impelindo-o enganosamente para a morte.
Manteve a sua rota para sudeste e a terra foi-lhe desaparecendo da vista à medida que a noite se estendia sobre a orla oriental do mundo. Os côncavos das ondas estavam cheios de escuridão enquanto as cristas brilhavam ainda no reflexo rosa-claro vindo de ocidente. Gued cantou em voz alta a Loa do Inverno e todos os cantos que conseguiu recordar do Feito do Jovem Rei, pois eram cantados no Festival do Regresso-do-Sol. A sua voz era clara, mas quase nada no vasto silêncio do mar. O escuro da noite chegou rápido e, com ele, as estrelas de Inverno.
Durante toda aquela noite, a mais longa do ano, ele permaneceu acordado, observando as estrelas a nascerem à sua esquerda, a girarem sobre a sua cabeça, a afundarem-se nas longínquas e negras águas à direita, e sempre com o longo vento do Inverno a levá-lo para sul sobre um mar invisível. Só por um momento, de vez em quando, lhe foi possível adormecer, mas para logo acordar com um estremeção. Aquele barco em que navegava não era, a bem dizer, um verdadeiro barco, mas uma coisa mais que por metade formada de encantamentos e feitiçaria, não passando o resto de meras pranchas e madeira levada pelo mar que, se ele deixasse abrandar os encantamentos de dar forma e de prender que lançara sobre elas, em breve se iriam soltar e espalhar, partindo à deriva como um pequeno conjunto de destroços sobre as ondas. E também a vela, toda ela tecida de magia e ar, pouco tempo suportaria o vento se ele adormecesse, antes se tornaria ela própria um breve sopro de vento. Os encantamentos de Gued eram eficazes e poderosas, mas quando a matéria sobre a qual agem tais sortilégios é escassa, o poder que os mantém ativos tem de ser renovado a cada momento. E assim Gued não dormiu naquela noite. Teria progredido com mais facilidade e rapidez sob a forma de falcão ou golfinho, mas Óguion aconselhara-o a não mudar de forma e ele conhecia o valor dos conselhos de Óguion. Portanto, continuou a navegar para sul e a longa noite passou lentamente, até que o raiar do primeiro dia do novo ano veio iluminar todo o mar.
Pouco depois do nascer do Sol, avistou terra à sua frente, mas só muito devagar se aproximava dela. Com a madrugada, o vento do mundo amainara. Ergueu um pouco de vento mágico para a sua vela, a fim de o levar até àquela terra. A sua vista, o temor entrara de novo nele, o medo penetrante que o impelia a voltar costas, a fugir. E seguiu esse mesmo medo como um caçador segue os sinais, as pegadas largas, arredondadas, com garras, do urso que, a qualquer momento, podia saltar sobre ele de dentro dos maciços de arbustos. Porque estava agora perto. Sabia-o.
Era uma terra de aspecto estranho a que se ia erguendo do mar à medida que ele se aproximava mais e mais. O que de longe parecera ser uma única montanha escarpada dividia-se afinal em várias arestas longas e íngremes, talvez ilhas separadas, entre as quais o mar passava em estreitos braços ou canais. Gued debruçara-se sobre muitas cartas e mapas na torre do Mestre dos Nomes em Roke, mas respeitavam na sua maior parte ao Arquipélago e aos mares interiores. Mas agora estava na Estrema Oriental e não sabia que ilha poderia ser aquela. Nem isso lhe dava muito que pensar. Medo era o que havia à sua frente, o que se açoitava escondendo-se dele ou esperando por ele nas encostas e florestas da ilha, e direito a esse medo dirigiu o barco.
Já os montes coroados de árvores, escuros, ensombravam da sua enorme altura o barco cá em baixo. A espuma das vagas que se quebravam contra as falésias rochosas era soprada em borrifos de encontro à vela, ao mesmo tempo que o vento mágico o levava, entre dois grandes cabos, para um braço de mar, como uma rua marítima que se desenrolava em frente dele, penetrando fundo na ilha, com uma largura que não excedia o comprimento de duas galés. O mar, confinado, encapelava-se e batia contra as íngremes falésias. Não havia praias, pois os montes mergulhavam diretamente na água que o frio reflexo dos seus cumes escurecia. Ali não havia vento, mas um grande silêncio.
A sombra conduzira-o ao engano, primeiro para a charneca de Osskil, depois, no meio do nevoeiro, de encontro às rochas. Haveria agora um terceiro embuste? Fora ele que impelira a coisa até ali, ou fora ela que ali o atraíra, para uma armadilha? Não o sabia. Sabia apenas que sentia o tormento do temor, e que tinha de seguir em frente e fazer o que se dispusera a fazer, perseguir o mal, seguir o seu próprio terror até à fonte de onde brotara. Comandou o barco com grande cuidado, olhando atentamente para a frente e para trás, para cima e para baixo dos montes em ambos os lados. Deixara a luz do Sol do novo dia atrás de si, no mar aberto. Aqui tudo era escuridão. A abertura entre as paredes rochosas parecia-lhe, ao olhar para trás, uma porta longínqua e fulgurante. Acima dele, os montes erguiam-se altos, cada vez mais altos, à medida que ele se aproximava da base da montanha de onde nasciam e que a rua de água se ia estreitando. Apurou a vista para diante, para a escura fenda, e para a direita e a esquerda, até ao cimo das grandes encostas, esburacadas de cavernas, inçadas de penedos, a que se apegavam árvores com as raízes meias no ar. Nada se movia. E agora estava a alcançar o fim da enseada, uma massa de rocha elevada, nua e rugosa, de encontro à qual, reduzidas até à largura de uma pequena angra, as últimas ondas marinhas batiam debilmente. Penedos tombados, troncos apodrecidos e as raízes de árvores nodosas deixavam apenas uma estreita passagem por onde conduzir o barco. Uma armadilha, uma escura armadilha sob a base da montanha silenciosa, e ele estava dentro dessa armadilha. Nada se movia em frente ou acima dele. Reinava uma quietude de morte. E não podia avançar mais.
Fez virar o barco, conduzindo-o cuidadosamente com encantamento e o seu remo de recurso, não fosse ele embater nas rochas submersas ou ficar enredado nas raízes e ramos estendidos sob a água, até ficar de novo de frente para o exterior. E estava prestes a erguer um vento que o levasse de volta para de onde viera, quando subitamente as palavras do esconjuro se gelaram nos seus lábios e sentiu o coração arrefecer dentro de si. Olhou para trás, por cima do ombro. A sombra estava atrás dele, dentro do barco.
Tivesse ele perdido um só instante e estaria perdido. Mas estava pronto e lançou-se a agarrar e manter a coisa que vacilava e tremia ali, ao alcance dos seus braços. Não havia feitiço que o ajudasse agora, mas apenas a sua própria carne, a sua própria vida, contra a não-vida. Sem pronunciar uma só palavra, atacou e o barco mergulhou e oscilou com o seu súbito virar-se e lançar-se em frente. Uma dor correu-lhe pelos braços acima, atingiu-lhe o peito, tirando-lhe a respiração, um frio gélido encheu-o todo e os seus olhos cegaram. Mas nas suas mãos que tinham agarrado a sombra nada havia — trevas, ar.
Cambaleou para a frente, agarrando-se ao mastro a impedir a queda, e a luz voltou aos seus olhos. Viu a sombra afastar-se arrepiadamente dele, diminuir de volume e logo expandir-se enormemente acima dele, acima da vela, por um instante. Depois, como fumo no vento, recuou e fugiu, informe, ao longo da água e em direção à entrada clara, entre as falésias.
Читать дальше