Quando o vulto falou, a voz rouca surgiu das profundezas do capuz de veludo preto, forrado com pele de animal.
— Psiu! — chamou. — Estou à procura de um mago.
A voz parecia simular a rouquidão, mas, novamente, isso não era novidade na Tambor.
— Algum mago em particular? — perguntou Rincewind, com cautela. Qualquer um poderia se meter em apuros, num caso desses.
— Um que guarde o sentido da tradição e não se importe em assumir riscos em troca de uma boa recompensa — disse outra voz. Ela parecia vir da caixa arredondada, de couro preto, debaixo do braço do desconhecido.
— Ah — soltou Rincewind. — Isso limita um pouco as coisas. Envolve alguma viagem arriscada a terras desconhecidas e provavelmente perigosas?
— Envolve.
— Encontro com criaturas exóticas? — indagou Rincewind, sorrindo.
— Talvez.
— Morte quase certa?
— Quase certo que sim.
Rincewind balançou a cabeça e pegou o chapéu.
— Bem, eu lhe desejo sorte em sua busca — disse. — Eu mesmo poderia ajudá-lo, mas não vou.
— O quê?
— Sinto muito. Não sei por que, mas a idéia de morte certa, em terras desconhecidas, sob a garra de monstros exóticos, não me agrada. Já tentei e não me adaptei. Cada um na sua, é o que dizem, e eu nasci para o tédio.
Enfiou o chapéu na cabeça e levantou-se, vacilante. Havia chegado ao pé da escada que conduzia à rua quando uma voz logo atrás dele se fez ouvir:
— Um mago de verdade teria aceitado.
Ele poderia ter seguido adiante. Poderia ter subido a escada, alcançado a rua, comprado uma pizza no restaurante klatchiano de Beco dos Golpes e ido dormir. A história teria sido totalmente diferente — na verdade, bem mais curta —, e ele teria aproveitado uma boa noite de sono, embora no chão.
O Futuro prendeu a respiração, esperando que Rincewind se fosse.
Ele não se foi por três motivos. O primeiro era o álcool. O segundo era a minúscula chama de orgulho que flameja mesmo no coração do maior dos covardes. E o terceiro era a voz. Era linda. Parecia aveludada.
O assunto “magos e sexo” é complicado. Mas como já foi sugerido, em essência, resume-se ao seguinte: quando se trata de vinho, mulher e música, os magos podem beber e dançar à vontade.
O motivo apresentado aos magos jovens era que a prática da magia era difícil, absorvente e incompatível com atividades complicadas e secretas. Muito mais sensato, advertiam-lhes, seria que parassem de se preocupar com aquele tipo de coisa e realmente dominassem a Cartilha Oculta de Woddeley, por exemplo.
Por estranho que pareça, a justificativa não parecia satisfizê-los, e os magos jovens desconfiavam de que o verdadeiro motivo residia no fato de que as regras eram feitas por magos velhos. Com memória fraca. Os alunos estavam enganados, embora a verdadeira razão tivesse, havia muito tempo, sido esquecida: se os magos pudessem sair por aí procriando, haveria risco de fonticeria.
Evidentemente, Rincewind sabia um pouco das coisas e havia levado seu aprendizado a tal ponto que conseguia passar várias horas seguidas em companhia de uma mulher sem precisar sair para tomar uma chuveirada e se deitar. Mas aquela voz faria até estátua descer do pedestal para correr em volta do campo e executar flexões. Era uma voz que poderia fazer “bom dia” parecer convite para a cama.
A desconhecida tirou o capuz e sacudiu a cabeleira. Os fios eram louros, quase brancos. Como a pele estava bronzeada, o efeito geral era calculado para atingir a libido masculina feito chumbo grosso.
Rincewind hesitou e perdeu uma excelente oportunidade de ficar na sua. Do alto da escada, veio a voz grossa do troll:
— Ei, eu dixe que voxê não podia entrar…
Ela deu um salto para a frente e botou a caixa redonda de couro nos braços de Rincewind.
— Rápido, você tem de vir comigo — disse. — Está correndo grande perigo!
— Por quê?
— Porque, se não vier, vou matá-lo.
— Tudo bem, mas, espere um instante, nesse caso… — protestou Rincewind, sem forças.
Três membros da guarda pessoal do Patrício apareceram no alto da escada. O líder abriu um sorriso. O sorriso sugeria que ele pretendia ser o único a se divertir com a piada.
— Ninguém se mexa — ordenou.
Rincewind ouviu o barulho de outros guardas surgindo na porta dos fundos. Os outros fregueses da Tambor se detiveram empunhando armas variadas. Aqueles não eram os vigilantes municipais, sempre precavidos e jovialmente corruptos. Aquilo eram toras ambulantes de puro músculo, que não se deixavam subornar, mesmo porque o Patrício podia pagar mais que qualquer pessoa. Fosse como fosse, eles não pareciam estar à procura de ninguém, além da mulher. O resto da clientela relaxou e preparou-se para assistir ao espetáculo. Eventualmente, talvez decidissem participar, uma vez que era óbvio o lado vencedor.
Rincewind sentiu a pressão aumentar em torno do pulso.
— Você está doida? — sussurrou. — Isso é desafiar o Homem!
Ouviu-se um zunido e, no ombro do sargento, de repente brotou um cabo de faca. A garota deu meia volta e, com precisão cirúrgica, acertou o pezinho entre as pernas do primeiro guarda à porta. Vinte pares de olhos lacrimejaram por compaixão.
Rincewind segurou o chapéu e tentou mergulhar debaixo da mesa mais próxima, mas a mão que o agarrava era de aço. O segundo guarda a se aproximar levou uma facada na coxa. Depois, a garota sacou uma espada comprida feito agulha e ergueu-a ameaçadoramente.
— Mais alguém? — perguntou.
Um dos guardas suspendeu uma balista. O bibliotecário, que estava sentado, debruçado sobre sua bebida, estendeu um braço que parecia dois cabos de vassoura amarrados com elástico e deu-lhe um tapa. O dardo ricocheteou na estrela do chapéu de Rincewind e acertou a parede, ao lado de um respeitado alcoviteiro, sentado a duas mesas dali. O guarda-costas dele lançou outra faca, que quase atingiu um ladrão do outro lado do bar, que ergueu uma cadeira e acertou dois guardas, que espancaram quem estava mais perto deles, bebendo. Depois disso, uma coisa meio que levou a outra, e logo todos lutavam para tentar algo — ou fugir, ou revidar.
Rincewind se viu arrastado para trás do balcão. O proprietário estava ali debaixo, sentado nos sacos de dinheiro, com dois facões cruzados sobre os joelhos, aproveitando um drinque tranqüilo. De vez em quando, o barulho de móveis se quebrando o fazia encolher.
A última coisa que Rincewind viu antes de ser arrastado dali foi o bibliotecário. Apesar de parecer um saco peludo cheio de água, o orangotango tinha o peso e o tino de qualquer homem do bar e estava, agora, sentado nos ombros de um guarda, tentando, com relativo sucesso, desparafusar sua cabeça.
Mais preocupante para Rincewind era o fato de ele estar sendo levado para o andar de cima.
— Minha cara senhorita — disse, em desespero. — O que você pretende?
— Existe uma passagem para o telhado?
— Existe. O que há nessa caixa?
— Psiu!
Ela se deteve numa curva do sujo corredor, vasculhou a pochette e espalhou um punhado de pequenos objetos de metal pelo chão. Cada qual consistia em quatro pregos soldados, de maneira que não importava o modo como as peças caíam: um deles sempre apontava para cima.
A garota analisou o vão de porta mais próximo.
— Você não teria um metro de corda aí? — perguntou, esperançosa.
Ela havia sacado outra faca e estava brincando com ela.
— Acho que não — respondeu Rincewind, com voz sumida.
— Que pena! A minha acabou. Tudo bem, vamos lá.
— Por quê? Eu não fiz nada!
Ela se dirigiu à janela mais próxima, abriu as persianas e parou com uma perna sobre o peitoril.
— Tudo bem — falou. — Fique aí e explique aos guardas.
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