Então foi até junto de Gued e disse-lhe com suavidade:
— Temos de continuar, meu Senhor.
Gued nada respondeu, mas pôs-se de pé. E Arren acrescentou:
— Temos de ir pelas montanhas, julgo eu.
E a isto Gued respondeu, num segredar enrouquecido.
— É teu o caminho, rapaz. Ajuda-me.
E assim iniciaram a subida pelas encostas de poeiras e escória, adentrando-se nas montanhas, com Arren a ajudar o companheiro tanto quanto podia. O escuro era total nas lombas e nas gargantas pelo que tinha de encontrar o caminho às apalpadelas e era difícil dar ao mesmo tempo apoio a Gued. Caminhar era também difícil, sempre aos tropeções. Mas quando começaram a ter de trepar e escalar, à medida que as encostas se foram tornando mais íngremes, tudo se tornou mais difícil ainda. Os rochedos eram ásperos, queimando-lhes as mãos como ferro derretido. E no entanto fazia frio e o frio foi aumentando com a subida. Tocar aquele solo era um tormento. Queimava como carvões em brasa. Havia um fogo a arder dentro das montanhas. Mas o ar continuava sempre frio e sempre escuro. Não se ouvia um som. Não soprava vento algum. As pedras aguçadas fendiam-se sob as suas mãos e fugiam-lhes debaixo dos pés. Negros e alcantilados, os contrafortes e fendas iam subindo à frente deles e desapareciam para trás no negrume. Para trás, para baixo, o reino dos mortos ia ficando perdido. Em frente, para cima, os picos e rochedos destacavam-se contra as estrelas. E nada se movia em toda a extensão daquelas negras montanhas, exceto aquelas duas almas mortais.
Muitas vezes o cansaço fazia Gued tropeçar ou falhar a passada. A sua respiração tornava-se cada vez mais difícil e, quando as suas mãos embatiam com mais violência contra a pedra, arquejava de dor. Ouvi-lo queixar-se apertava o coração de Arren. Tentava impedi-lo de cair. Mas freqüentemente o caminho era demasiado estreito para poderem ir a par, ou Arren tinha de seguir adiante para encontrar sítio onde apoiar os pés. E por fim, numa elevada encosta que parecia erguer-se até às estrelas, Gued escorregou e caiu, e não conseguiu voltar a erguer-se.
— Meu Senhor — chamou Arren, ajoelhando-se junto dele. E depois pronunciou o seu nome: — Gued.
Mas o mago não se moveu nem deu resposta.
Arren tomou-o nos braços e carregou-o por aquela íngreme encosta. Chegado ao cimo, encontrou terreno direito numa certa extensão. Arren pousou o seu fardo e deixou-se cair ao lado, exausto, dolorido, de esperança perdida. Aquele era o cimo da passagem entre os dois negros picos, pelo qual tinha vindo a lutar. Ali era a passagem e o fim. Não havia caminho para diante. O final da extensão plana era a beira de uma escarpa. Para lá dela, a escuridão prolongava-se para sempre e as pequenas estrelas permaneciam suspensas e imóveis no golfo negro do céu.
Mas a pertinácia pode durar mais que a esperança. Arren rastejou em frente, logo que o conseguiu fazer, teimosamente. Olhou para lá da beira da escuridão. E abaixo de si, um pouco abaixo apenas, viu a praia de areia cor de marfim. As vagas brancas e ambarinas rolavam e quebravam-se em espuma sobre ela, e do lado de lá do mar o Sol estava a pôr-se, no meio de uma bruma dourada.
Arren voltou ao negrume. Voltou atrás. Ergueu Gued o melhor que lhe foi possível e esforçadamente o levou consigo, até não conseguir avançar mais. E ali todas as coisas deixaram de existir: a sede e a dor, e o escuro, e também a luz do Sol e o som do mar a rebentar na praia.
Quando Arren despertou, um grande nevoeiro ocultava o mar e as dunas e colinas de Selidor. A rebentação vinha murmurando como um trovejar distante, saindo do nevoeiro, e murmurando a ele regressava. Estava-se na maré alta e a praia era agora muito mais estreita do que quando ali tinham chegado. As últimas linhas de espuma das ondas vinham lamber a mão esquerda de Gued, estendida na direção do mar, e o mago jazia de borco sobre a areia. Tinha as roupas e o cabelo molhados e também as roupas de Arren se lhe pegavam gelidamente ao corpo, como se pelo menos uma vez o mar tivesse rebentado diretamente sobre eles. Do corpo morto de Cob não havia vestígios. Talvez as ondas o tivessem arrastado para o largo. Mas atrás de Arren, como ele viu ao voltar a cabeça, enorme e indistinto na bruma que o envolvia, o corpo cinzento de Orm Embar avultava como uma torre em ruínas.
Arren ergueu-se, tiritando de frio. Mal se podia ter de pé, com os membros gelados e hirtos, e uma espécie de vertigem e fraqueza como as que vêm de se estar por muito tempo deitado, sem movimento. Cambaleou como um homem embriagado. Porém, logo que lhe foi possível controlar o movimento do corpo foi junto de Gued e conseguiu arrastá-lo um pouco pela areia acima, afastando-o de onde as ondas alcançavam, mas foi tudo o que pôde fazer. Gued parecia-lhe muito frio, muito pesado. Carregara-o através da fronteira entre a morte e a vida, mas talvez em vão. Encostou o ouvido ao peito do mago, mas não podia impedir os seus membros de tiritar nem os dentes de bater, para conseguir ouvir o coração. Voltou a erguer-se e tentou bater os pés para restituir algum calor às pernas e, finalmente, tremendo e arrastando-se como um velho, afastou-se em busca das suas mochilas. Tinham-nas abandonado junto a um pequeno rio que vinha da cumeada das colinas, há muito tempo, ao aproximarem-se da casa de ossos. Era esse rio que ele procurava, pois não conseguia pensar em mais nada que não fosse água, água doce.
Quando ainda mal esperava, chegou junto ao rio, no ponto em que atingia a praia e se multiplicava nos meandros de um dédalo de ramificações, semelhante a uma árvore de prata, até à orla do mar. Ali se deixou cair de joelhos e bebeu, com o rosto e as mãos mergulhados na água, sugando-a para a boca e para o espírito.
Soergueu-se por fim e, ao fazê-lo, viu do outro lado do rio, imenso, um dragão.
A cabeça, cor de ferro e como que manchada de ferrugem nas narinas, órbitas e maxilares, pendia encarando-o, quase sobre ele. As garras enterravam-se profundamente na areia macia e molhada da margem do rio. As asas encolhidas eram parcialmente visíveis, assemelhando-se a velas, mas o resto do corpo escuro perdia-se no nevoeiro.
Não se movia. Podia estar ali agachado há horas, ou há anos, ou há séculos. Era esculpido em ferro, formado na rocha… mas os olhos, os olhos que Arren não se atrevia a fitar, os olhos como óleo rodando em espiral sobre água, como um fumo amarelo por detrás de um vidro, os olhos profundos e opacos, amarelos, observavam Arren.
Não havia nada que pudesse fazer. Assim, pôs-se de pé. Se o dragão o quisesse matar, matá-lo-ia. E se não o fizesse, ele tentaria ajudar Gued, se é que havia alguma ajuda possível para ele. Endireitou-se e começou a caminhar ao longo do ribeiro, em busca das mochilas.
O dragão nada fez. Continuou agachado, imóvel e atento. Arren encontrou as mochilas, encheu ambos os cantis de couro no riacho e regressou atravessando a areia em direção a Gued. Poucos passos dera ainda para longe do rio e já o dragão se perdera no espesso nevoeiro.
Conseguiu que Gued bebesse alguma água mas não pôde reanimá-lo. Jazia frouxo e frio, a cabeça pesando no braço de Arren. O seu rosto escuro estava acinzentado, com o nariz, as maçãs do rosto e a velha cicatriz a destacarem-se asperamente. Até o seu corpo parecia emaciado e gasto, como que semiconsumido.
Arren permaneceu sentado na areia úmida, com a cabeça do companheiro sobre os joelhos. O nevoeiro formava uma espécie de esfera ao redor deles, menos espessa em cima. Nalgum lado, no meio do nevoeiro, estava o corpo do dragão morto, Orm Embar, e o dragão vivo, esperando junto ao ribeiro. E nalgum lado, com Selidor de permeio, estava o barco Vê-longe, sem provisões a bordo, sobre as areias de uma outra praia. E depois, para leste, o mar. Trezentas milhas entre eles e qualquer outra terra da Estrema Oeste, talvez. E mil até ao Mar Interior. Tão longe. «Tão longe como Selidor», costumava dizer-se em Enlad. As velhas histórias contadas às crianças, os mitos, começavam sempre: «Há tanto tempo como sempre e tão longe como Selidor, vivia um príncipe…»
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