— Dá-me luz, meu Senhor! — bradou Arren. E Gued ergueu o seu bordão acima da cabeça, deixando que o clarão branco rompesse aquela velha escuridão, cheia de pedras e sombras, por entre as quais a figura elevada e um pouco vergada em frente do cego se apressava e esquivava, dirigindo-se para jusante com um estranho andar, cego mas sem hesitações. Após ele avançou Arren, de espada na mão, e após Arren, Gued.
Arren em breve se distanciara do companheiro e a luz era muito fraca, e constantemente quebrada pelos rochedos e pelas voltas do leito do rio. Mas o som dos passos de Cob, bem como a sensação da sua presença mais à frente, era guia suficiente. E Arren foi-se lentamente aproximando, à medida que o caminho se tornou mais íngreme. Subiam agora uma garganta profunda inçada de pedras. O Rio Seco, estreitando em direção à nascente, serpenteava por entre margens a pique. Rolavam-lhes pedras ruidosamente debaixo dos pés e também das mãos, pois eram obrigados agora a escalar. Arren pressentiu que estavam chegados ao ponto onde as margens se ligavam e, com um súbito impulso para a frente, alcançou Cob e agarrou-o por um braço, forçando-o a estacar. Encontravam-se numa espécie de bacia rochosa de cinco ou seis pés de largura, o que poderia ter sido um poço de rio se alguma vez ali tivesse corrido água. E, acima, uma escarpa pouco firme, de pedras e escória vulcânica. Nessa escarpa abria-se um buraco negro, a nascente do Rio Seco.
Cob não tentou libertar-se. Ficou muito quieto, enquanto a luz que anunciava a aproximação de Gued lhe iluminava o rosto sem olhos. Ele voltara-se para enfrentar Arren.
— É este o lugar — afirmou finalmente, com uma espécie de sorriso a formar-se nos lábios. — É este o lugar que procuravas. Vê-lo? Ali podes renascer. Tudo o que precisas de fazer é seguir-me. Tornar-te-ás imortal. E seremos reis juntos.
Arren olhou aquela seca e escura nascente, a boca de pó, o lugar onde uma alma morta, rastejando para dentro da terra e do negrume, nascia de novo, morta. Era-lhe abominável e pronunciou numa voz áspera, combatendo uma agonia mortal:
— Que seja fechada!
— Será fechada — afirmou Gued, surgindo atrás dele. E a luz jorrava agora das suas mãos e do seu rosto como se ele fosse uma estrela tombada na terra naquela noite infindável. Perante ele, a nascente seca, a porta, abriu-se. Era larga e oca, mas se profunda ou superficial não se poderia dizer. Nada havia nela onde a luz caísse, que o olhar pudesse ver. Era vazia. Através dela não passava luz nem escuridão, nem vida nem morte. Era nada. Era um caminho que não conduzia a lugar algum.
Gued ergueu as mãos e falou.
Arren segurava ainda o braço de Cob. O cego pousara a mão livre sobre as rochas da falésia. Permaneciam ambos imóveis, presos no poder do encantamento.
Com todo o talento acumulado numa vida de aprendizagem, com toda a energia do seu indômito coração, Gued lutou por fechar aquela porta, por reintegrar o mundo no seu todo uma vez mais. E sob o poder da sua voz e o império das suas mãos que as conduziam e modelavam, as rochas aproximaram-se umas das outras, penosamente, tentando formar um todo, encontrarem-se. Mas ao mesmo tempo a luz ia-se tornando cada vez mais fraca, retirando-se das suas mãos e do seu rosto, retirando-se do seu bordão de teixo, até que apenas um breve lucilar pendia deste. E a esse débil clarão, Arren viu que a porta estava quase fechada.
Sob a sua mão, o cego sentiu moverem-se as rochas, sentiu como se aproximavam. E sentiu também a arte e o poder a entregarem-se, a gastaram-se, esgotados… E de súbito bradou «Não!» e, arrancando-se à prisão de Arren, lançou-se para a frente, agarrando Gued no seu poderoso e cego aperto. Derrubando Gued sob o seu peso, cerrou-lhe as mãos à volta do pescoço para o estrangular.
Mas Arren, erguendo a espada de Serriadh, fez a lâmina descer, direita e com força, sobre o pescoço inclinado de Cob, logo abaixo do emaranhado cabelo da nuca.
O espírito vivo tem seu peso no mundo dos mortos e a sombra da sua espada tem um gume. A lâmina abriu um grande golpe, cortando a espinha de Cob. Sangue negro brotou, iluminado pela luz da própria espada.
Porém, de nada vale matar um homem morto e Cob estava morto, morto há anos. A ferida fechou engolindo o seu sangue. O cego ergueu-se em toda a sua estatura, tateando com os longos braços na direção de Arren, o rosto contorcido de raiva e ódio. Como se só agora se tivesse apercebido de quem era o seu verdadeiro inimigo e rival.
Tão horrível de ver era esta recuperação de um golpe mortal, esta incapacidade de morrer, mais horrível que qualquer morte, que uma ira cheia de repugnância cresceu em Arren, uma fúria insensata, e brandindo a espada voltou a ferir, um golpe único, terrível, de cima abaixo. Cob caiu com o crânio aberto e o rosto coberto de sangue. Mas mesmo assim, Arren logo voltou a atacar, para uma vez mais o ferir antes que a brecha se pudesse fechar, ferir até o matar…
A seu lado, Gued, erguendo-se a custo sobre os joelhos, pronunciou uma palavra.
Ao som da sua voz Arren estacou, como se um punho lhe tivesse agarrado o braço que segurava a espada. E o cego, que igualmente começara a erguer-se, ficou também perfeitamente imóvel. Gued pôs-se de pé. Cambaleou um pouco mas, logo que conseguiu manter-se direito, voltou-se de frente para a falésia.
— Que fiques una e inteira! — ordenou numa voz clara e, com o seu bordão, desenhou a traços de fogo por sobre a entrada de rochas um sinal: a Runa Ágnen, a Runa do Acabar, que põe fim às estradas e é aposta nas tampas dos caixões. E então deixou de haver fenda ou lugar vazio entre os penedos. A porta estava fechada.
O solo da Terra Árida tremeu sob os seus pés e, através do céu ermo e imutável, um grande rolar de trovão passou e perdeu-se ao longe.
— Pela palavra que não será pronunciada até ao fim dos tempos te invoquei. Pela palavra que foi pronunciada no criar de todas as coisas eu te liberto agora. Vai livre!
E inclinando-se sobre o cego, que estava agachado sobre os joelhos, Gued murmurou-lhe ao ouvido, sob o cabelo branco emaranhado.
Cob ergueu-se. Relanceou em volta com olhos agora dotados de visão. Olhou para Arren e depois para Gued. Não pronunciou qualquer palavra, mas encarou-os com os seus olhos escuros. Não havia ira no seu rosto, nem ódio, nem dor. Lentamente virou costas e, seguindo o curso do Rio Seco, em breve lhes desaparecia da vista.
Não restava já qualquer luz no bordão de teixo de Gued, nem no seu rosto. Estava de pé, parado, no meio do escuro. Quando Arren se aproximou, agarrou no braço do jovem para se manter direito. Por um momento foi sacudido pelo espasmo de um soluçar sem lágrimas.
— Está acabado — murmurou. — Tudo se foi.
— Está acabado, sim, meu Senhor. Temos de ir.
— Temos, sim. Temos de voltar a casa.
Gued parecia alguém confuso ou exausto. Seguiu Arren de volta descendo o curso do rio, tropeçando e andando lentamente, dificilmente, por entre as pedras e os penedos. Arren manteve-se a seu lado. Quando as margens do Rio Seco se tornaram baixas e o solo menos íngreme, virou-se para o caminho por onde tinham ali chegado, a longa e informe encosta que subia para o escuro. Depois desviou-se dele.
Gued nada disse. Logo que tinham parado, sentara-se desamparadamente num bloco de lava, esgotado, a cabeça pendente.
Arren sabia que o caminho por onde tinham vindo lhes estava vedado. Só podiam continuar. Tinham de fazer todo o percurso até final. «Só o demasiado longe é suficientemente longe», recordou. Ergueu o olhar para os negros picos, frios e silenciosos, recortando-se contra as estrelas imóveis, terríveis. E uma vez mais ouviu aquela irônica voz da sua vontade falando dentro de si, incansável e trocista: «Irás parar a meio do caminho, Lebánnen?»
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