Eu conquistara Yegey, mas Obsle continuou sentado, mergulhado na sua gordura, observando-me com seus olhos pequeninos.
“É preciso um mês para considerar o assunto”, observou. “E, se viesse de outra fonte que não a sua, Estraven, acreditaria ser pura farsa, uma armadilha para nosso orgulho, tecida com a luz das estrelas. Mas conheço seu pescoço rijo. Muito duro para se curvar a uma desgraça assumida a fim de nos tapear. Não acredito que esteja falando a verdade e sei também que uma mentira o faria engasgar… bem, bem; ele falará conosco como falou com você?”
“É isso justamente que ele deseja: falar e ser ouvido. Aqui ou ali. Tibe vai silenciá-lo se ele tentar falar, novamente, em Karhide. Sinceramente, temo por sua sorte; ele parece não compreender o perigo a que está exposto.”
“Você nos dirá o que sabe?”
“Direi, sim, mas há alguma razão que o impeça de vir aqui e falar pessoalmente?”
Yegey, roendo a unha, respondeu pensativamente:
“Creio que não. Ele requereu permissão para entrar na comensalidade. Karhide não faz objeção. Seu pedido está sendo examinado.”
Das anotações de Ong Tot Oppong, investigador, do primeiro grupo ecúmeno que foi a Gethen-Inverno. Ciclo 93, E. Y. 1448.
1448 — 81.° dia. Trata-se, provavelmente, de uma experiência. A idéia é desagradável. Mas agora que há evidência a favor da teoria de que a colônia Terra foi uma experiência, a implantação de um grupo normal de Hain, num mundo com seus autóctones proto-hominídios, esta possibilidade não pode ser ignorada. A manipulação genética humana foi, certamente, praticada pelos colonizadores; só ela explica os seres de S ou os hominídios alados em degeneração de Rokanan. Algo diferente poderá explicar a fisiologia sexual dos gethenianos? Acidente? Possivelmente. Seleção natural, impossível. Sua ambissexualidade não tem nenhum ou pouco valor adaptativo. E por que escolher um mundo tão difícil para um experimento? Não há explicação.
Tinibossol acha que uma colônia foi instalada, num período interglacial, em condições climatéricas mais amenas, nos primeiros quarenta ou cinqüenta mil anos, aqui. Quando o gelo recomeçou a progredir, a avançar, a retirada de Hain foi completa e os colonizadores ficaram entregues a si próprios; uma experiência abandonada. Estou teorizando a respeito das origens da fisiologia sexual dos gethenianos. Mas o que sei realmente sobre ela? Otie Nim fez comunicados sobre a região de Orgoreyn que esclareceram algumas das minhas dúvidas iniciais. Mas vamos registrar aqui tudo o que sei, e depois minhas hipóteses. Tudo na devida ordem.
O ciclo sexual dura em média de vinte e seis a vinte e oito dias — em geral é de vinte e seis dias, aproximadamente. Durante vinte e um ou vinte e dois dias, o indivíduo fica em somer, isto é, sexualmente inativo, latente. No décimo oitavo dia, efetuam-se mudanças hormonais sob a ação da pituitária, e no vigésimo segundo ou vigésimo terceiro dia o indivíduo entra na fase de kemmer. Na sua primeira fase de kemmer ele ainda se conserva totalmente andrógino (em karhideano, secher).
Um getheniano, nesta primeira fase de kemmer, se à sós ou com outros não em kemmer, é incapaz de copular. No entanto, o impulso sexual é tremendamente poderoso nesta fase, dominando toda a personalidade, submetendo tudo ao seu imperativo. Quando o indivíduo encontra um parceiro em kemmer a secreção hormonal é então estimulada (principalmente pelo toque, pelo tato), até que num dos parceiros há o predomínio dos hormônios de um dos sexos: masculino ou feminino.
Os órgãos genitais se desenvolvem ou se atrofiam, conforme for o caso, o jogo do amor se intensifica e o companheiro, estimulado pela mudança, assume o outro papel sexual (sem exceção? se há exceções, ocorrendo em parceiro de kemmer do mesmo sexo, é tão raro que é ignorado).
Nesta segunda fase de kemmer (em karhideano, thorharmen), o processo de definição mútua da sexualidade e potência ocorre, aparentemente, dentro do espaço de tempo que vai de duas a vinte e quatro horas. Se um dos parceiros já está em pleno kemmer, a fase para o outro pode ser encurtada; se os dois estão entrando em kemmer juntos, ela se processa mais lentamente. Indivíduos normais não têm predisposição especial para tal tendência sexual — eles sequer sabem se serão machos ou fêmeas e não têm escolha deliberada quanto a isso. (Otie Nim registrou que na região de Orgoreyn o uso de hormônios para estabelecer uma determinada sexualidade é freqüente, mas não pude observar isto nas zonas rurais de Karhide.) Uma vez definido o sexo, ele não pode mudá-lo naquele período de kemmer. A fase culminante (em karhideano, thokemmer) dura de dois a cinco dias, durante os quais a tendência e a capacidade sexuais atingem o apogeu. Ela acaba bastante abruptamente, e se a concepção não se efetua o indivíduo retorna à fase somer em poucas horas (nota: Otie Nim pensa que esta quarta fase é o equivalente do ciclo menstrual), e o ciclo recomeça. Se o indivíduo que desempenha o papel feminino fica grávido, a atividade hormonal, naturalmente, continua e, pelo período de 8,4 meses de gestão e seis a oito meses de lactação, o indivíduo permanece feminino. Os órgãos sexuais masculinos ficam reduzidos (como estão quando em somer), o busto se desenvolve e a circunferência pélvica se alarga. Com o fim do período de lactação, o indivíduo retorna ao somer e torna-se um andrógino perfeito.
Não se estabelecem hábitos fisiológicos e a mãe de várias crianças pode ser o pai de muitas outras.
Observações do ponto de vista social: muito superficiais ainda; tenho me deslocado muito para obter dados coerentes.
O kemmer nem sempre é realizado aos pares, embora este seja o hábito mais comum, porém nas casas de kemmer, nas cidades e metrópoles, grupos podem ser formados e o relacionamento sexual se dar promiscuamente, entre machos e fêmeas do grupo.
O extremo oposto desta prática é o costume de jurar kemmering (em karhideano, oskyommer), que é, na realidade e nos seus propósitos, um casamento monogâmico. Não tem autorização legal, mas é uma antiga e forte instituição aceita social e eticamente. A estrutura básica dos clãs e domínios karhideanos está, sem dúvida, fundada na instituição do casamento monogâmico. Não estou seguro das regras do divórcio; aqui em Osnoriner há divórcio, mas não um novo casamento após o divórcio ou morte do companheiro: jurar kemmering, só uma vez na vida.
A descendência, naturalmente, em toda Gethen, é reconhecida pela parte da mãe, “pai de carne” (em karhideano, amha).
O incesto é permitido, mas com muitas restrições, mesmo de irmãos dos mesmos pais de juramento. Mas irmãos não podem jurar kemmering, nem conservar o kemmering após o nascimento dos seus filhos. Incesto entre gerações diferentes é formalmente proibido, em Karhide-Orgoreyn; mas conta-se que é permitido entre as tribos de Perunter, no Continente Antártico. Pode ser calúnia.
Que mais sei ao certo? Isto parece resumir tudo.
Há um aspecto deste arranjo anômalo que pode ter um valor adaptativo. Desde que a cópula se efetue apenas no período de fertilidade, as possibilidades de conceber filhos são grandes, como em todos os mamíferos que têm um ciclo de fecundidade. Em condições de vida difíceis, onde a mortalidade infantil é alta, o valor da sobrevivência da raça importa muito. Atualmente nem a taxa de mortalidade nem a de natalidade são elevadas nas áreas civilizadas de Gethen. Tinibossol estima a população em aproximadamente cem milhões de pessoas, nos três continentes, e acha que tem se mantido estável pelo menos por um milênio. Parece que desempenham um papel considerável nesta estabilidade a abstenção ética e ritualística e o uso de anticoncepcionais.
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