Após caminhar um pouco deparei com uma cabana de madeira, bem à minha direita, e daí pude ver uma edificação bastante grande, também de madeira, mais longe, à minha esquerda. Chegava até mim o cheiro gostoso de peixe fresco sendo fritado.
Fui caminhando vagarosamente, um tanto inseguro. Eu não sabia como os handdaratas encaravam forasteiros. Realmente sabia muito pouco sobre eles. Handdara é uma seita, sem ser uma instituição, sem sacerdotes, hierarquia, votos ou credos. Ainda sou incapaz de dizer se eles têm um deus ou não. Sua única manifestação objetiva se dá nessas fortalezas, espécie de retiro ou mosteiro onde as pessoas se recolhem para passar uma noite ou toda a vida.
O que me levava a buscar este culto intangível, nos seus esconderijos secretos, era a vontade de obter uma resposta que os investigadores não tinham conseguido para a pergunta: “Que são esses augures? O que eles realmente fazem?” Eu tinha me demorado em Karhide muito mais que meus investigadores e duvidava muito das histórias dos áugures e de suas profecias. Lendas sobre vaticínios são comuns através de toda a história da humanidade. Deus fala, espíritos falam, computadores falam. Ambigüidade oracular ou probabilidades estatísticas dão margem de acerto e as discrepâncias são expurgadas. Os mitos, no entanto, são dignos de serem investigados. Eu não conseguira ainda convencer nenhum karhideano da existência da comunicação telepática — eles não acreditariam se não “vissem”. Exatamente como eu, em relação aos áugures do handdara.
Enquanto prosseguia no meu caminho, observei que uma aldeia inteira se espalhava à sombra daquela floresta, ao pé da montanha, de maneira tão casual como tudo em Rer, mas pacífica, rural, secreta.
Acima dos tetos e das trilhas projetavam-se os ramos dos hemmens, a árvore mais comum no planeta Inverno, uma robusta conífera com agulhas espessas de um vermelho pálido. As veredas estavam coalhadas de hemmen; o vento vinha perfumado com o pólen de hemmen, e todas as casas eram construídas com sua madeira escura. Parei, finalmente, me perguntando em qual casa deveria bater, quando uma pessoa apareceu entre as árvores e me cumprimentou cortesmente:
— Está procurando um lugar para morar? — perguntou.
— Vim fazer uma consulta aos áugures.
Decidi que eles deveriam tomar-me por um karhideano, pelo menos no começo. Nunca tivera nenhum trabalho de passar por um nativo, se eu o desejasse. Entre todos os dialetos existentes, o meu sotaque passava despercebido e minhas diferenças sexuais estavam escondidas pelo vestuário pesado.
Eu não tinha a cabeleira abundante e fina dos gethenianos, assim como a obliqüidade dos olhos; era mais escuro e mais alto que a maioria, mas não além dos limites da média. Tinha feito uma depilação definitiva da barba quando ainda estava em Ollul. (Naquela ocasião não sabíamos das tribos “peludas” de Perunter, que não são apenas barbados, mas têm cabelos pelo corpo, como os terráqueos.) Eu tinha um nariz achatado, enquanto os dos gethenianos eram proeminentes e estreitos, adaptados à respiração em atmosfera extremamente fria. Às vezes perguntavam como quebrara o nariz.
A pessoa que estava no caminho de Otherhord olhava para meu nariz com uma certa curiosidade.
— Então, quer falar com o áugure-mestre? Ele está ali na clareira, agora, a não ser que tenha saído de trenó. Ou preferia falar, primeiro, com um dos celibatários?
— Não estou bem certo… Sou muito ignorante…
O jovem sorriu e fez vénia com a cabeça.
— Tenho muita honra em saber. Já vivo aqui há três anos, mas não adquiri ignorância suficiente para ser digno de mencioná-lo.
Ele estava com disposição para brincar, mas seus modos eram gentis, e pelo que eu já havia captado do modo de pensar do handdara podia perceber que tinha me vangloriado ao dizer aquilo, o equivalente a dizer “sou muito bonito”…
— Bem — procurei completar —, eu nada sei sobre os áugures. ..
— O que é invejável — respondeu o jovem. — Posso conduzi-lo à clareira? Meu nome é Goss. — Era seu primeiro nome.
— O meu é Genry — disse-lhe desistindo de pronunciar o “1” do meu nome certo. Seguimos para o interior da floresta sombria através de um cáminho que mudava freqüentemente de direção, ora subindo, ora descendo. Junto dos maciços troncos de hemmens estavam as pequenas casas coloridas da floresta. Tudo era vermelho e castanho, calmo, fragrante, úmido e sombrio. De uma cabana partia o doce e discreto sopro de uma flauta. Goss caminhava rápido e ágil, gracioso como uma adolescente, alguns passos à minha frente. De repente, sua roupa se iluminou: era a luz do sol que batia em cheio num prado completamente verde.
Na nossa frente estava uma figura ereta, imóvel, túnica vermelha e camisa branca, recortada contra a pradaria verde como uma incrustação de esmalte brilhante. Mais adiante, outra, imóvel como uma estátua, em azul e branco. Esta nem sequer se moveu em nossa direção durante o tempo em que nos dirigíamos à primeira. Estavam praticando o handdara do ser, que é uma espécie de transe. O handdarata, voltado para as negativas, chama esta prática de “não-transe”, que envolve uma espécie de esquecimento de si próprio através de uma extrema receptividade e consciência sensorial. Apesar de a técnica ser o oposto exato da maior parte das práticas de misticismo, é também, no fundo, uma disciplina mística voltada para a experiência da imanência. Não posso, porém, falar com segurança de nenhuma prática dos handdaratas.
Goss dirigiu-se ao primeiro, o de túnica vermelha. Ele saiu de sua profunda meditação, de sua imobilidade, olhou- nos e veio lentamente na nossa direção. Senti respeito e espanto: ao meio-dia, em plena luz do sol, ele brilhava com intensidade, com uma luz toda sua, interior. Era tão alto quanto eu, porém mais esbelto. Seu rosto era belo, aberto, límpido. Quando seu olhar encontrou o meu, senti, subitamente, vontade de dirigir-me a ele através da comunicação mental que até então não usara, desde que descera em Gethen, e não deveria usar ainda. Mas o impulso de fazê-lo foi mais forte que meu controle. Tentei enviar-lhe meus pensamentos. Não houve resposta. Parecia que nenhum contato fora feito. Ele continuava a olhar direto para mim. Após um momento, sorriu e falou numa voz suave:
— O senhor é o Enviado, não?
— Sou… — gaguejei.
— Meu nome é Faxe. Estamos honrados em recebê-lo. Quer ficar conosco em Otherhord, por uns tempos?
— Éo que mais desejo. Estou procurando aprender alguma coisa sobre sua prática de vaticinar. E, se existe algo que lhe possa dar em troca, sobre o que sou, de onde venho…
— Como queira — respondeu Faxe com um sorriso sereno. — É muito lisonjeiro para nós saber que cruzou o oceano do espaço e depois alguns milhares de quilômetros através do Kargav para chegar até nós.
— Minha vinda até Otherhord é motivada pela fama de suas profecias.
— Desejaria assistir à prática dos vaticínios, talvez… Ou tem alguma pergunta a fazer?
Seu olhar límpido me forçava a falar a verdade.
— Não sei bem — disse.
— Nusuth — respondeu —, não importa. Talvez, se demorar algum tempo, descobrirá se tem ou não alguma pergunta a fazer. Os áugures só podem se reunir em determinadas épocas. Assim, seria conveniente que se demorasse conosco alguns dias.
Assim o fiz e foram dias muito agradáveis.
O tempo corria sem muita organização, exceto para o trabalho comunal, a lavoura no campo, a derrubada das árvores, a manutenção — para os quais as pessoas de passagem, assim como eu, eram convocadas quando um auxílio extra se fazia necessário. Fora o trabalho, um dia podia transcorrer sem que se proferisse uma só palavra; as pessoas com quem eu mais falava eram o jovem Goss e Faxe — o áugure-mestre —, cujo caráter extraordinário era translúcido e profundo como águas claras; era a própria quintessência do caráter do local.
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