De vez em quando, olhava para Eri. Estava silenciosa, hirta, e raramente olhava para a paisagem mutável. A casa — a nossa casa — deveria ser azul com telhado cor detoçja.-Toquei com a língua nos lábios e soube-me a sal. A estrada virou e correu paralela à linha arenosa da praia. O oceano, de ondas aparentemente imóveis por causa da distância, juntava a sua voz ao rugido do motor.
O chalé era um dos últimos da estrada. Um minúsculo jardim, com os arbustos cinzentos da espuma salgada, conservava os vestígios de uma recente tempestade. As ondas deviam ter chegado mesmo à sebe baixa: aqui e ali viam-se conchas vazias. O telhado inclinado estendia-se à frente, como a aba caprichosamente dobrada de um chapéu, e proporcionava muita sombra. Atrás de uma grande duna coberta de erva via-se o chalé vizinho, a uns 600 passos de distância. Em baixo, na praia em meia-lua, avistavam-se as formas minúsculas das pessoas.
Abri a porta do carro.
— Eri.
Ela saiu sem dizer uma palavra. Se ao menos soubesse o que se passava atrás daquela testa franzida! Caminhou a meu lado para a porta.
— Não, assim não — disse-lhe eu. — Não deves transpor o limiar.
— Porquê?
Peguei-lhe.
— Abre… — pedi.
Ela tocou na chapa com os dedos e a porta abriu-se.
Atravessei o limiar com ela e depositei-a no chão.
— É um costume. Para dar sorte.
Primeiro foi ver as divisões do chalé. A cozinha ficava nas traseiras, era automática e tinha um robot — não era realmente um robot, mas sim apenas um imbecil eléctrico, para fazer a lida da casa. Sabia pôr a mesa e cumpria instruções, mas só dizia meia dúzia de palavras.
— Eri, gostarias de ir à praia?
Abanou a cabeça. Estávamos parados no meio da sala maior, branca e dourada.
— Então do que gostarias? Talvez…
Repetiu o gesto antes de eu acabar a frase.
Compreendi o que me estava reservado. Mas os dados estavam lançados e o jogo teria de ser jogado.
— Vou buscar as nossas coisas — disse-lhe, e esperei que ela respondesse, mas Eri sentou-se numa cadeira verde como erva e eu compreendi que não falaria.
O primeiro dia foi terrível. Eri não fez nada óbvio, não se esforçou propositadamente para me evitar e depois do almoço até tentou estudar um pouco — perguntei-lhe, então, se podia ficar no seu quarto, a vê-la, e prometi que não diria uma palavra e não a perturbaria. Mas decorrido um quarto de hora (que rápido da minha parte!) compreendi que a minha presença era um tremendo fardo para ela. Denunciavam-no a linha das suas costas e os seus movimentos pequenos e cautelosos, o seu esforço oculto. Por isso, coberto de suor, bati apressadamente em retirada e fui andar de um lado para o outro no meu próprio quarto. Ainda não a conhecia. Mas percebia que ela não era estúpida, longe disso. O que, na situação vigente,
tanto era bom como mau. Era bom porque, mesmo que não compreendesse, ela podia pelo menos calcular o que eu era e não veria um monstro bárbaro ou um selvagem. Era mau porque, nesse caso, o conselho que Olaf me dera no.último momento não serviria de nada. Citara-me um aforismo que eu conhecia, de Hon: «Para que a mulher seja como fogo o homçm deve ser como gelo.» Por outras palavras, ele achava que a minha única oportunidade seria à noite e não durante o dia. Eu não queria que assim fosse e por essa razão me atormentava, mas compreendia que no curto espaço de tempo que me restava não podia esperar comunicar com ela, alcançá-la por meio de palavras, que tudo quanto eu dissesse permaneceria no exterior, pois de maneira nenhuma enfraqueceria a sua rectidão, a sua justificada cólera, que só se manifestara uma vez numa breve explosão, quando ela começara a gritar: «Não quero! Não quero!» Também considerei mau sinal o facto de, então, se ter controlado tão depressa.
Ao anoitecer começou a ter medo. Tentei manter-me calmo, andar suavemente, como Voov, o pequeno piloto que conseguia — perfeito homem de poucas palavras — dizer e fazer tudo quanto queria sem falar.
Depois do jantar — ela não comeu nada, o que me alarmou —, senti a cólera crescer dentro de mim. Em certas ocasiões quase a odiei pelo meu próprio tormento e a grande injustiça desse sentimento serviu apenas para o intensificar.
A nossa primeira verdadeira noite juntos. Quando ela adormeceu nos meus braços ainda toda afogueada, e a sua respiração entrecortada começou, em suspiros cada vez mais fracos, a serenar e a conduzi-la ao sono, tive a certeza de que vencera. Debatera-se do princípio ao fim, não comigo, mas com o seu corpo, que eu fiquei a conhecer: as unhas delicadas, os dedos delgados, as palmas das mãos, os pés, tudo coisas que tive de abrir e trazer à vida, por assim dizer, com os meus beijos e o meu hálito, abrindo caminho para ela — contra ela — com infinita paciência e lentidão, de modo que as transições foram imperceptíveis. Todas as vezes que sentia uma resistência crescente, como a morte, batia em retirada e começava a segredar-lhe palavras loucas, insensatas e infantis, ou voltava a ficar silencioso e limitava-me a acariciá-la, a sitiá-la com o meu contacto horas a fio, até senti-la descontrair-se e a sua rigidez ceder o lugar à tremura de uma última defesa. Depois tremeu de modo diferente, já conquistada, mas mesmo assim esperei e, sem dizer nada, pois o que se passava ficava além das palavras, puxei da escuridão os seus braços esguios e os seus seios — o seio esquerdo, pois aí batia o coração cada vez mais depressa. A sua respiração tomou-se mais violenta, desesperada, e aconteceu o que tinha de acontecer. Não foi sequer prazer, mas sim a misericórdia do aniquilamento e da dissolução, um ataque à última muralha dos nossos corpos, para que na violência pudessem ser só um durante alguns segundos. Os nossos hálitos ofegantes, o nosso fervor, tudo se fundiu em esquecimento, ela gritou uma vez, fracamente, com a voz alta de uma criança, e agarrou-me. E depois as suas mãos largaram-me furtivamente, como que numa grande vergonha e tristeza, como se compreendesse de repente como a ludibriara horrivelmente. E comecei tudo outra vez, os beijos nas curvas dos dedos, as súplicas mudas, toda a tema e cruel progressão. E repetiu-se tudo, como num escaldante sonho negro, e a certa altura senti a sua mão enterrada no meu cabelo a comprimir o meu rosto contra o seu ombro nu com uma força que não esperara nela. Mais tarde, exausta, a respirar rapidamente como se quisesse expulsar de si o calor acumulado e o medo súbito, adormeceu. E eu fiquei imóvel, como morto, tenso, a tentar discernir se o que acontecera significava alguma coisa ou não significava nada. Imediatamente antes de adormecer pareceu-me que estávamos salvos e só então veio a paz, uma grande paz, tão grande como a de Kereneia, quando estive deitado nos lençóis quentes de lava estalada com Arder, cuja boca via respirar atrás do vidro do seu fato, apesar de ele estar inconsciente, o que me disse que não tinha sido em vão, apesar de não ter sequer forças para abrir a válvula do seu cilindro de reserva. Fiquei paralisado, com a sensação de que a maior coisa da minha vida já ficara para trás e que, se morresse naquele instante, nada mudarij. A minha imobilidade era como o inexprimível silêncio do triunfo.
Mas de manhã recomeçou tudo. Nas primeiras horas do dia continuou envergonhada — ou talvez fosse desprezo o que sentia, embora eu não soubesse se era por mim se por ela própria, pelo que acontecera. Por volta da hora do almoço consegui persuadi-la a dar uma pequena volta de automóvel. Seguimos ao longo das imensas praias, com o Pacífico estendido ao sol à nossa frente, colosso rugidor sulcado por crescentes de espuma branca e dourada, cheio até ao horizonte de minúsculas velas coloridas. Parei o carro onde as praias terminavam numa inesperada parede de rocha. A estrada descrevia uma curva acentuada e, parados a um metro da sua beira, víamos em baixo a rebentação violenta. Regressámos a casa para almoçar. Foi como na véspera e tudo em mim se revoltava ao pensamento da noite, porque não queria que fosse assim. Quando não estava a olhar para ela, sentia os seus olhos postos em mim. Sentia-me intrigado com os seus renovados cenhos franzidos, com os seus súbitos olhares fixos. E de repente, pouco antes do jantar, ao sentarmo-nos à mesa, compreendi tudo, como se alguém me tivesse aberto o crânio com uma simples pancada. Apeteceu-me esmurrar-me a mim mesmo. Que idiota egocêntrico eu tinha sido, que canalha auto-enganador! Fiquei atordoado, imóvel com uma tempestade dentro de mim e bagas de suor na testa. Senti-me fraquíssimo.
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