Abri os olhos e acordei de um sonho, de um sonho insensato: sonhara que estava a nadar. Qualquer coisa fria e húmida corria-me pela cara, senti mãos a sacudirem-me e ouvi uma voz.
— Olaf… — murmurei. — Porquê, Olaf? Porquê…?
— Hal!
Esforcei-me para despertar por completo, apoiei-me num cotovelo e vi a cara dela debruçada para mim, próxima. Quando me sentei, tão atordoado que não conseguia raciocinar, ela deixou-se cair devagar nos meus joelhos, com os ombros sacudidos… e eu continuei sem poder acordar. Sentia a cabeça enorme, como que cheia de algodão.
— Eri — murmurei, com os lábios curiosamente grandes, pesados e, não sei explicar como, muito distantes. — Eri, és tu. Ou estou apenas…
E, de súbito, senti a força voltar-me, agarrei-lhe nos braços, levantei-a e levantei-me, e andei cambaleante com ela. Caímos ambos na areia macia e ainda quente. Beijei-lhe a cara húmida e salgada e chorei — foi a primeira vez na minha vida— e ela chorou também. Não dissemos nada durante muito tempo. Gradualmente, começámos a ter medo — de quê, não sei— e ela olhou-me com olhos desvairados.
— Eri — repeti. — Eri… Eri…
Era tudo quanto sabia dizer. Deitei-me na areia, subitamente fraco, e ela alarmou-se ainda mais, tentou levantar-me, mas não teve forças.
— Não. Eri — murmurei. — Não, eu estou bem. É só este…
— Hal! Diz qualquer coisa! Diz qualquer coisa!
— Que hei-de dizer?… Eri…
A minha voz acalmou-a um pouco. Afastou-se a correr e voltou com uma lata, da qual me deitou de novo água na cara — amarga, a água do Pacífico. Eu tencionara beber uma quantidade muito maior — lembrou-me, rápido, um pensamento insensato. Pestanejei. Sentei-me e toquei na cabeça. Não tinha sequer um golpe. O meu cabelo amortecera o impacto e, por isso, só tinha um alto do tamanho de uma laranja, algumas escoriações e os ouvidos ainda a zumbir, mas estava bem. Pelo menos enquanto permaneci sentado. Quando tentei levantar-me. as pernas não pareceram querer cooperar.
Ela ajoelhou à minha frente, a observar, de braços caídos aos lados.
— És realmente tu? — perguntei.
Só então compreendi. Virei-me e vi, através da nauseante vertigem provocada pelo movimento, duas formas negras entrelaçadas ao luar, a uma dúzia de metros de distância, na berma da estrada. A voz não me obedeceu quando voltei a olhar para Eri.
— Hal…
— Sim?
— Tenta levantar-te. Eu ajudo-te.
— Levantar-me?
Aparentemente, a minha cabeça ainda não estava desanuviada. Compreendia e não compreendia o que acontecera. Fora Eri que viajara no gleeder? Impossível.
— Onde está o Olaf? — perguntei.
— O Olaf? Não sei.
— Queres dizer que ele não esteve aqui?"
— Não.
— Vieste sozinha?
Acenou afirmativamente.
E. de súbito, apossou-se de mim um medo temvel, desumano.
— Como foste capaz? Como?
O rosto dela tremeu, os lábios tremeram-lhe, teve dificuldade em dizer as palavras.
— Ti-tive de…
Chorou de novo. Depois serenou, tornou-se mais calma. Tocou-me na cara. na testa. Com dedos leves tacteou-me a cabeça. Repeti, ofegante:
— Eri… és tu?
Dementado. Mais tarde, vagarosamente, levantei-me. Ela amparou-me o melhor que pôde e caminhámos para a estrada. Só então vi em que estado o automóvel se encontrava. A capota, a frente toda, estava tudo como um acordeão. O gleeder. pelo contrário, quase não apresentava estragos. — pude assim apreciar a sua superioridade —, além de uma pequena amolgadela de lado, onde sustentara a maior força do choque. Eri ajudou-me a entrar, fez recuar o gleeder até os destroços do meu carro caírem de lado com um longo som metálico, e arrancou. Voltámos para trás. Fiquei calado, enquanto as luzes desfilavam. A minha cabeça não se segurava, ainda grande e pesada. Apeámo-nos defronte do chalé. As janelas continuavam iluminadas, como se tivéssemos saído só por um momento. Ajudou-me a entrar em casa. Deitei-me na cama. Ela aproximou-se da mesa, contomou-a e dirigiu-se para a porta. Sentei-me.
— Vais-te embora!
Correu para mim, ajoelhou ao lado da cama e abanou a cabeça.
— Não?
— Não.
— E nunca me deixarás?
— Nunca.
Abracei-a. Ela encostou a face à minha e tudo se esvaiu de mim: as brasas ardentes da minha obstinação e da minha cólera, a loucura das últimas horas, o medo e o desespero. Fiquei vazio, como morto, e limitei-me a apertá-la a mim com mais força, como se as minhas energias tivessem voltado. Reinava o silêncio, a luz brilhava no papel dourado das paredes do quarto e algures, muito longe, noutro mundo, fora das janelas abertas, o Pacífico bramia., Pode parecer estranho, mas nessa noite não dissemos nada. Nem uma única palavra. Só no outro dia, já tarde, soube o que se passara. Assim que eu partira no automóvel, ela adivinhara a razão e entrara em pânico, sem saber que fazer. Primeiro pensara em chamar o robot branco, mas compreendera que não poderia ajudá-la. E ele — não se lhe referia de outro modo — também não podia ajudar. Olaf, talvez. Olaf, com certeza, mas ela não sabia onde encontrá-lo e, de resto, não havia tempo. Meteu-se no gleeder da casa e partiu atrás de mim. Alcançou-me depressa e depois manteve-se na minha retaguarda enquanto houve a possibilidade de eu ir apenas regressar ao chalé.
— Ter-te-ias apeado, então? — perguntei.
Hesitou.
— Não sei… penso que teria. Penso assim agora, mas saber, não sei.
Depois, quando vira que eu não parava e continuava em frente, ficara ainda mais assustada. O resto já eu sabia.
— Não, não compreendo — confessei. — É essa parte que não compreendo. Como foste capaz?
— Disse a mim própria que… que não aconteceria nada.
— Sabias o que eu queria fazer? E onde?
— Sabia.
— Como?
Uma longa pausa.
— Não sei. Talvez porque, entretanto, aprendera a conhecer-te um pouco.
Fiquei calado. Ainda tinha muitas coisas que perguntar, mas não ousava. 154
Estávamos de pé junto da janela. De olhos fechados, a sentir o grande espaço aberto do oceano, disse:
— Está bem, Eri. Mas e agora? Que vai acontecer?
— Já te disse.
— Mas eu não quero assim — murmurei.
— Não pode ser de nenhum outro modo — respondeu, após outra longa pausa. — Além disso…
— Além disso?
— Não importa.
Nesse mesmo dia, ao anoitecer, as coisas voltaram a piorar. Os nossos problemas voltaram, progrediram e retrocederam. Porquê? Não sei. Provavelmente ela também não sabia. Dir-se-ia que só em situações extremas nos tomávamos chegados, íntimos, e só então conseguíamos compreender-nos um ao outro. Seguiu-se uma noite. E outro dia.
No quarto dia ouvi falar ao telefone e fiquei assustadíssimo. Depois ela chorou. Mas ao jantar estava de novo sorridente.
E isso foi o fim e o princípio. Porque na semana seguinte fomos a Mae, a principal cidade do distrito, e num escritório, perante um homem vestido de branco, dissemos as palavras que fizeram de nós marido e mulher. Nesse mesmo dia mandei um telegrama a Olaf. No dia seguinte fui aos Correios, mas não havia nada dele. Pensei que talvez se tivesse mudado e daí o atraso. Para dizer a verdade, já então, nos Correios, senti uma ponta de ansiedade, porque aquele silêncio não estava de acordo com a maneira de ser de Olaf. Mas, com tudo quanto acontecera, só pensei no assunto um rfiomento e nem disse nada a Eri. Como se o caso estivesse esquecido.
Para um casal unido apenas pela violência da minha loucura, entendíamo — nos melhor do que seria de esperar. A nossa vida em comum estava sujeita a uma curiosa divisão. Quando se tratava de uma diferença de atitudes, Eri era capaz de defender a sua posição, embora o assunto em causa fosse, por norma, geralmente de natureza geral. Por exemplo, ela era urna forte defensora da betrização, pela qual pugnava com argumentos que não eram retirados de livros. Eu considerava bom sinal o facto de se opor tão abertamente às minhas opiniões. Mas estas nossas discussões decorriam durante o dia. À luz do dia, não se atrevia — ou não desejava — falar de mim objectiva e calmamente, sem dúvida porque não sabia qual das suas palavras equivaleria a apontar algum defeito pessoal meu, algum aspecto absurdo «do tipo do boião dos picles», para usar a expressão de Olaf, e que um ataque nivelava aos valores básicos do meu tempo. Mas à noite — talvez porque a escuridão atenuasse um tanto a minha presença— falava-me de mim próprio, isto é, de nós, e eu gostava dessas conversas serenas às escuras, porque a escuridão ocultava misericordiosamente o meu espanto frecjuente.
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