— Ele queria matar-se. Por sua causa! — gritou, rouco, a agarrar a garganta.
Virei o rosto e encostei-me à parede, com as pernas a tremer. Estava tão envergonhado, tão horrivelmente envergonhado… Ela olhou-nos, primeiro a um e depois ao outro. Olaf continuava a segurar a garganta.
— Vão, os dois — disse eu, serenamente.
— Terás de acabar primeiro comigo.
— Por piedade.
— Não.
— Vá, por favor — disse ela a Olaf.
Eu fiquei mudo, de boca aberta. Olaf olhou-a, aparvalhado.
— Rapariga, ele… Ela abanou a cabeça.
Sem afastar os olhos de nós, Olaf saiu do quarto. Ela olhou para mim.
— É verdade? — perguntou.
— Eri…
— Tem de ser?
Acenei afirmativamente. E ela abanou a cabeça.
— Quer dizer…? — perguntei, e repeti, tartamudeante: — Quer dizer…? Ficou calada. Aproximei-me dela e vi que estava encolhida, que as suas mãos tremiam agarradas à aba solta do fofo roupão.
— Porquê? Por que tem tanto medo? Abanou a cabeça.
— Não?
— Não.
— Mas está a tremer. 136
— Não é nada.
— E… partirá comigo?
Acenou duas vezes com a cabeça, como uma criança. Abracei-a o mais delicadamente que pude. Como se ela fosse de vidro.
— Não tenha medo — murmurei. — Olhe…
As minhas próprias màos tremiam. Por que nào tinham tremido então, quando me tomara lentamente grisalho à espera de Arder? Que reservas, que íntimos recessos, atingira finalmente, a fim de tomar consciência do que valia?
— Sente-se — disse. — Ainda está a tremer? Não, espere.
Deitei-a na minha cama e tapei-a até ao pescoço.
— Melhor?
Acenou afirmativamente. Seria muda apenas comigo ou era assim mesmo?
— Diga-me qualquer coisa — pedi. num murmúrio.
— O quê?
— Fale-me a seu respeito. Quem é. O que faz. O que deseja. Não… o que desejava antes de eu lhe cair em cima como uma avalanche.
Encolheu ligeiramente os ombros, como se dissesse: «Não há nada a dizer.»
— Não quer falar? Porquê?
— Não é importante — respondeu, e foi de tal maneira como se me batesse com aquelas palavras que recuei.
— Quer dizer… Eri… quer dizer… — gaguejei.
Mas agora compreendia. Compreendia perfeitamente.
Levantei-me de um pulo e comecei a andar de um lado para o outro.
— Dessa maneira, não. Dessa maneira não posso. Não eu…
Fiquei de boca aberta. Mais uma vez. Porque ela sorria. O sorriso era tão ténue que mal se notava.
— Eri. que…?
— Ele tem razão.
— Quem?
— Aquele homem, o seu amigo.
— Tem razão a respeito de qué?
Era-lhe difícil dizê-lo. Desviou o olhar.
— Que não é sensato.
— Como sabe que ele disse isso?
— Quvi-o.
— A nossa conversa? Depois do jantar?
Acenou com a cabeça e corou. Até as suas orelhas ficaram rosadas.
— Não pude deixar de ouvir. Vocês falavam muitíssimo alto. Teria saído. mas…
Compreendi. A porta do seu quarto ficava no corredor. Que grande idiota eu fora! Fiquei atordoado.
— Ouviu tudo?
Acenou afirmativamente.
— E sabia que era a seu respeito?
— Mmm…
— Mas como? Eu nunca mencionei…
— Já sabia, antes disso.
— Como?
— Não sei. Sabia. Quero dizer, ao prinrípio julguei que estava a imaginar.
— E quando, mais tarde?
— Não sei… Durante o dia. Senti-o.
— Teve medo? — perguntei, cabisbaixo.
— Não.
— Não? Porquê?
Voltou a sorrir tenuemente.
— É exactamente, exactamente como…
— Como o quê?
— Como num conto de encantar. Eu não sabia que se podia ser dessa maneira… e se não tivesse sido o faco de… você sabe… teria pensado que era um sonho.
— Não é, garanto-lhe.
— Oh, eu sei! Só disse que era dessa maneira. Sabe o que quero dizer?
— Não sei, exactamente. Parece que sou um obtuso, Eri. Sim, o Olaf tem razão. Sou um asno. Um asno chapado. Por isso, fale claramente sim?
— Está bem. Pensa que é assustador, mas não é nada. Só… Calou-se, como se não conseguisse encontrar as palavras. Eu estivera a escutá-la boquiaberto.
— Eri, minha criança, eu… eu não pensava que fosse assustador. Não pensava. Que disparate. Foi só quando cheguei e ouvi, e aprendi várias coisas… Mas basta. Já disse o suficiente. Já falei de mais. Nunca na minha vida fui tão falador. Fale, Eri, fale. — Sentei-me na cama.
— Não tenho nada que dizer, realmente. A não ser… não sei…
— Não sabe o quê?
— Oue vai acontecer?
Debrucei-me para ela. Fitou-me nos olhos. As suas pálpebras não estremeceram. Os nossos hálitos misturaram-se.
— Por que me deixou beijá-la?
— Não sei.
Toquei-lhe na face com os lábios. No pescoço. Deitei a cabeça no seu ombro. Nunca me sentira assim. Nem soubera que me poderia sentir. Apetecia-me chorar.
— Eri — murmurei, quase inaudivelmente. — Eri. Salve-me.
Ficou imóvel. Ouvi, como que muito distante, o bater rápido do seu coração. Endireitei-me.
— Podíamos… — comecei, mas não tive coragem de acabar. Levantei-me, apanhei o candeeiro, endireitei a secretária e tropecei em qualquer coisa: o canivete. Estava caído no chão. Apanhei-o e atirei-o para a mala. Virei-me para ela.
— Vou apagar a luz — disse. — Está bem?
Não respondeu. Toquei no interruptor. A escuridão tomou-se completa, até na janela aberta, Não eram visíveis luzes nenhumas, nem mesmo distantes. Nada. Tudo negro. Tão negro como lá.
Fechei os olhos. O silêncio parecia zumbir.
— Eri — murmurei.
Ela não respondeu e eu senti o seu medo. Tacteei na direcção da cama. Escutei, para ouvir a sua respiração, mas o silêncio vibrante abafava tudo, como se se tivesse materializado na escuridão e agora fosse a escuridão. Devia ir-me embora, pensei. Sim, partiria imediatamente. Mas inclinei-me e, com uma espécie de clarividência, encontrei-lhe o rosto. Ela conteve a respiração.
— Não — murmurei —, realmente…
Toquei-lhe no cabelo. Afaguei-o com as pontas dos dedos. Ainda era estranho para mim, inesperado. Desejava tanto compreender tudo aquilo? Mas talvez não houvesse nada para compreender. Um tal silêncio… Olaf estaria a dormir? Com certeza que não. Estava a pé, a escutar. A espera. Devia ir ter com ele, então? Mas não podia. Aquilo era muito inprovável, incerto. Não podia. Não podia. Deitei a cabeça no ombro dela. Um movimento e estava a seu lado. Senti todo o seu corpo retesar-se, afastar-se. Murmurei:
— Não tenha medo.
— Não.
— Está a tremer.
— É só…
Enlacei-a. O peso da sua cabeça deslizou para a curva do meu braço. Ficámos assim, lado a lado, na escuridão e no silêncio.
— É tarde — murmurei. — Muito tarde. Pode dormir. Por favor, durma.
Embalei-a, apenas com o lento flectir do meu braço. Ficou quieta, mas eu senti o calor do seu corpo e da sua respiração. Da sua respiração acelerada. E o seu coração batia depressa, alarmado. Pouco a pouco, devagarinho, começou a acalmar. Devia estar muito cansada. Escutei ao princípio com os olhos abertos, mas depois fechei-os. Parecia-me que ouvia melhor assim. Já estaria a dormir? Quem era ela? Porque significava tanto para mim? Fiquei deitado, naquele escuro. Entrava uma brisa pela janela e agitava as cortinas, que faziam um roçagar suave. Eu estava imóvel e cheio de espanto. Ennesson. Thomas. Venturi. Arder. Para que fora tudo? Para aquilo? Uma pitada de pó. Lá onde o vento nunca sopra. Onde não há nuvens, nem sol, nem chuva, onde não há nada, exactamente como se o nada fosse possível ou sequer imaginável. E eu estivera lá? Estivera realmente? Porquê? Já não sabia nada, dissolvia-se tudo na escuridão informe. Imobilizei-me ainda mais. Ela estremeceu. Lentamente, virou-se de lado. Mas a sua cabeça continuou no meu braço. Murmurou qualquer coisa, muito suavemente. E continuou a dormir. Esforcei-me por imaginar a cromosfera de Arcturus. Uma fervilhante vastidão acima da qual voei e tomei a voar, como se girasse num monstruoso e invisível carrocei de fogo, de olhos dilatados e inchados, a repetir numa voz morta: Sonda, zero, sete — sonda, zero, sete — sonda, zero, sete — a repeti-lo mil vezes, de tal modo que depois a simples recordação dessas palavras fazia estremecer qualquer coisa em mim, como se tivesse sido marcado com elas, como se fossem uma ferida. E a resposta era um crepitar nos auriculares e a espécie de gargalhadinha esganiçada em que o meu receptor traduzia as chamas da proeminência — e isso era Arder, o seu corpo e o seu rosto, e o foguetão, transformados em gás, incandescente… E Thomas? Thomas perdera-se e ninguém sabia que ele… E Ennesson? Nunca nos entendemos, eu não o suportava. Mas na câmara de pressão lutei com Olaf, que não queria deixar-me ir porque era demasiado tarde. Que excelentemente nobre da minha parte! Mas não se tratava de nobreza, tratava-se simplesmente de uma questão de preço. Sim, porque nenhum de nós tinha preço, a vida humana atingia o valor mais elevado onde podia não ter nenhum, onde uma película fina, praticamente inexistente, a separava da aniquilação. Aquele fio ou contacto no rádio do Arder. Aquela soldadura no reactor de Venturi que escapara à detecção de Voss — mas era possível que se tivesse aberto subitamente, isso acontecia, no fim de contas, fadiga do metal… E Venturi deixara de existir em cinco segundos, talvez. E o regresso de Thurber? E o miraculoso salvamento de Olaf, que se perdera quando a sua antena direccional se furara — quando? Como? Ninguém sabia. Olaf voltou por milagre. Sim, uma probabilidade num milhão. E eu tive sorte. Uma sorte extraordinária, impossível. O braço doía-me, com uma dor maravilhosa. «Eri», disse mentalmente, «Eri.» Como o canto de um pássaro. Que nome! O canto de um pássaro… Costumávamos pedir ao Ennesson que imitasse cantos de aves. Ele tinha jeito para isso, muito jeito, mesmo. E quando pereceu foram com ele todos esses pássaros…
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