Mas as coisas começaram a tomar-se confusas. Mergulhei na escuridão, nadei através dela. Momentos antes de adormecer tive a impressão de que estava lá, no meu lugar, deitado no meu beliche nas profundezas do ferro, e que perto de mim estava deitado o pequeno Ame… Acordei um momento. Não. Arne não estava vivo e eu encontrava-me na Terra. A rapariga respirava serenamente.
— Deus te abençoe, Eri — disse, a inalar a fragrância do seu cabelo, e adormeci.
Abri os olhos sem saber onde estava nem sequer quem era. O cabelo escuro a espraiar-se através do meu braço — o braço dormente, como se fosse uma coisa estranha — surpreendeu-me. Durante uma fracção de segundo. Depois compreendi tudo. O Sol ainda não nascera; o alvorecer — branco-leite, sem vestígios de rosa, limpo e fresco — pairava nas janelas. Àquela luz precoce estudei o rosto de Eri, como se o visse pela primeira vez. Profundamente adormecida, respirava com os lábios fechados com força. Não devia sentir-se muito confortável no meu braço, pois metera uma das mãos debaixo da cabeça e de vez em quando, devagarinho, as suas pálpebras mexiam-se, como que numa surpresa contínua. O movimento era leve, mas eu observava-o atentamente, como se naquele rosto estivesse escrito o meu destino.
Pensei em Olaf. Com o máximo cuidado, comecei a libertar o braço. Afinal, o cuidado não era necessário. Ela dormia profundamente, a sonhar com qualquer coisa. Parei e tentei adivinhar, não o sonho, mas apenas se era ou não mau. O seu rosto era quase infantil. O sonho não era mau. Soltei-me e levantei-me. Estava com o roupão com que me deitara. Descalço, fui ao corredor e fechei a porta de mansinho, muito devagar, e com igual cuidado espreitei no quarto dele. A cama estava intacta. Olaf estava sentado à mesa, com a cabeça nos braços, a dormir. Não se despira, como eu pensara. Não sei o que o acordou — o meu olhar? Estremeceu, lançou-me um olhar vivo, endireitou-se e começou a espreguiçar-se.
— Olaf — disse eu —, nem em cem anos…
— Cala a boca — interrompeu-me bondosamente. — Sempre tiveste tendências pouco salutares, Hal.
— Já começas? Eu só queria dizer…
— Eu sei o querias dizer. Sei sempre o que vais dizer com uma semana de antecedência. Se tivesse havido necessidade de um capelão a bordo do Prometheus, terias servido para o lugar. Foi uma grandíssima pena não ter percebido isso antes. Ter-te-ia tirado a mania, fosse como fosse. Nada de sermões. Hal! Nada de solenidades, de pragas, de juras e coisas que tais. Como vai? Bom, hem?
— Não sei. Suponho… Não sei. Se te referes… bem, não aconteceu nada.
— Claro que não, primeiro tens de ajoelhar — redarguiu-me. — Tens de falar na posição de ajoelhado. Burro, perguntei-te alguma coisa a esse respeito? Estou a falar das tuas perspectivas, etc.
— Não sei. E não creio que ela saiba, também. Caí-lhe em cima como uma avalancha.
— Sim, é um problema — observou Olaf.
Despiu-se e começou a procurar os calções.
— Quanto pesas? Cento e dez quilogramas?
— Mais ou menos. Se estás à procura dos calções, tenho-os vestidos.
— Apesar de toda a tua santidade, sempre gostaste de fanar coisas — resmungou e, quando comecei a despi-los, acrescentou: — Deixa-os ficar, idiota. Tenho outro par na mala…
— Sabes por acaso como se fazem os divórcios? — perguntei.
Olaf olhou-me por cima da mala aberta e piscou o olho.
— Não, não sei. Como havia de saber? Mas ouvir dizer que é tão fácil como espirrar. E nem sequer é preciso dizer «santinho». Há por aqui uma casa de banho decente, com água?
— Não sei. Provavelmente não há. Só há do género… tu sabes.
— Pois sei. O vento revigorante com um cheiro a loção para os dentes. Uma abominação. Vamos para a piscina. Sem água não me sinto lavado. Ela está a dormir?
— Está.
— Então piremo-nos.
A água fria, soberba. Fiz um meio gainer com torção: saiu bem. Foi o meu primeiro. Vim à superfície meio sufocado, com água no nariz.
— Tem cuidado! — gritou Olaf do lado da piscina. — Agora precisas de ter cuidado. Lembras-te do Markel?
— Lembro. Porquê?
— Ele tinha ido às quatro luas amonificadas de Júpiter. Quando voltou e aterrou no campo de treinos, e saiu do foguetão carregado de troféus como uma árvore de natal, tropeçou e partiu uma perna. Por isso, tem cuidado. Estou a avisar-te.
— Tentarei. Esta água está muito fria. Vou sair.
— Pois claro, não apanhes alguma constipação. Não tive nenhuma durante dez anos, mas assim que aterrei em Luna comecei a tossir.
— Isso aconteceu porque lá era muito seco — observei, com ar sério.
Olaf riu-se, atirou-me água à cara e saltou a um metro de distância.
— Seco, exactamente — disse, ao vir à superfície. — Uma boa maneira de o descrever. Seco, mas não muito acolhedor.
— Ole, vou-me embora.
— Pois sim. Vemo-nos ao pequeno-almoço? Ou preferes que não?
— Claro que nos vemos.
Corri para o primeiro andar, a secar-me no caminho. A porta contive a respiração e espreitei cautelosamente. Ela ainda dormia. Aproveitei-me disso para mudar rapidamente de roupa. Também tive tempo para me barbear na casa de banho.
Enfiei a cabeça no quarto, pois pareceu-me que ela tinha dito qualquer coisa. Quando me aproximei da cama em bicos de pés, abriu os olhos.
— Dormi aqui?
— Dormiu. Sim, Eri.
— Tive a impressão de que alguém…
— Sim, Eri, eu estive aí.
Fitou-me como se, gradualmente, se lembrasse de tudo. Primeiro os seus olhos dilataram-se um pouco — de surpresa? — , depois fechou-os, voltou a abri-los e, furtiva e rapidamente, embora sem que o gesto me escapasse, olhou para debaixo do cobertor… e corou.
Pigarreei.
— Provavelmente quer ir para o seu próprio qiiarto? Talvez eu deva sair, ou…
— Não — interrompeu-me —, estou com o meu roupão.
Aconchegou-o bem à sua volta e sentou-se na cama.
— Afinal… é realidade? — disse baixinho, como se se despedisse de qualquer coisa.
Fiquei calado.
Levantou-se, atravessou o quarto e voltou para trás.
Ergueu para o meu rosto uns olhos em que havia uma interrogação, incerteza e mais qualquer coisa que eu não soube definir.
— Sr. Bregg…
— O meu nome é Hal. O meu primeiro nome. 142
— Sr… Hal, eu…
— Diga.
— Francamente não sei… Gostaria… Seon…
— O quê?
— Bem… ele…
Não podia ou não desejava dizer «o meu marido». Qual das coisas seria?
— Ele volta depois de amanhã.
— E?
— Oue vai acontecer? Engoli ern seco.
— Deverei ter uma conversa com ele? — perguntei.
— Oue quer dizer?
Foi a minha vez de a olhar com surpresa, sem compreender.
— Ontem disse… Esperei, — Oue me… levaria.
— Sim.
— E ele?
— Então devo falar com ele? — perguntei, a sentir-me estúpido.
— Falar? Ouer tratar pessoalmente disso?
— Ouem haveria de tratar?
— Tem de ser… o fim?
Havia qualquer coisa que me sufocava. Pigarreei.
— Francamente, não há outra maneira.
— Pensei que seria… uma mesk.
— Uma quê?
— Não sabe?
— Não compreendo nada. Não, não sei. Oue é isso? — perguntei, a sentir um calafrio ominoso; deparara-se-me de novo um daqueles vazios súbitos, um pântano de incompreensão.
— Trata-se do seguinte… Um homem… uma mulher… se um deles conhece uma pessoa… se quer, durante um certo período de tempo… Não sabe realmente nada a este respeito?
— Espere, Eri. Não sei, mas creio que começo a perceber. É qualquer coisa provisória, uma espécie de suspensão temporária, um episódio?
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