Luís Camões - Os Lusíadas

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Como iſto diſſe o Padre poderoſo,
A cabeça inclinando, conſentio
No que diſſe Mauorte valeroſo,
E Nectar ſobre todos eſparzio:
Pelo caminho Lacteo glorioſo,
Logo cada hum dos Deoſes ſe partio.
Fazendo ſeus reaes acatamentos,
Pera os determinados apouſentos.

Em quanto iſto ſe paſſa, na fermoſa
Caſa eterea do Olimpo omnipotente
Cortaua o mar a gente belicoſa:
Ia la da banda do Auſtro, & do Oriente,
Entre a coſta Ethiopica, & a famoſa
Ilha de ſam Lourenço, & o Sol ardente
Queimaua entam os Deoſes, que Tifeô
Co temor grande em pexes conuerteô.

Tam brandamente os ventos os leuauão,
Como quem o ceo tinha por amigo:
Sereno o ar, & os tempos ſe mostrauão
Sem nuuẽs, ſem receio de perigo:
O promontorio praſſo ja paſſauão
Na coſta de Ethiopia, nome antiguo.
Quando o mar deſcobrindo lhe moſtraua,
Nouas ilhas que em torno cerca, & laua.

Vaſco da gama, o forte Capitão,
Que a tamanhas empreſas ſe offerece,
De ſoberbo, & de altiuo coração,
A quem fortuna ſempre fauorece
Pera ſe aqui deter, não ve razão,
Que inhabitada a terra lhe parece:
Por diante paſſar determinaua:
Mas nam lhe ſoccedeo como cuydaua.

Eis aparecem logo em companhia,
Hũs pequenos bateis, que vem daquella
Que mais chegada à terra parecia,
Cortando o longo mar com larga vella:
A gente ſe aluoroça, & de alegria
Não ſabe mais que olhar a cauſa della.
Que gente ſera eſta, em ſi dezião,
Que costumes, que ley, que Rei terião?

As embarcações erão, na maneira
Muy veloces, eſtreitas, & compridas,
As vellas com que vem erão de eſteira,
Dũas folhas de Palma bem tecidas:
A gente da cor era verdadeira,
Que Phaeton, nas terras acendidas
Ao mundo deu, de ouſado, & não prudente,
O Pado o ſabe, & Lampetuſa o ſente.

De panos de algodão vinhão veſtidos,
De varias cores, brancos, & liſtrados,
Hũs trazem derredor de ſi cingidos,
Outros em modo ayroſo ſobraçados,
Das cintas pera cima vem deſpidos:
Por armas tem adagas, & tarçados.
Com toucas na cabeça, & nauegando,
Anafis ſonoroſos vão tocando.

Cos panos, & cos braços açenauão,
Aas gentes Luſitanas, que eſperaſſem:
Mas ja as proas ligeiras, ſe inclinauão,
Pera que junto aas Ilhas amainaſſem.
A gente, & marinheiros trabalhauão,
Como ſe aqui os trabalhos ſacabaſſem:
Tomão vellas, amainaſe a verga alta,
Da ancora o mar ferido, encima ſalta.

Não erão ancorados, quando a gente
Eſtranha, polas cordas ja ſubia,
No geſto ledos vem, & humanamente,
O Capitão ſublime os recebia.
As meſas manda por em continente,
Do licor que Lieo prantado auia:
Enchem vaſos de vidro, & do que deitão,
Os de Phaeton queimados nada engeitão.

Comendo alegremente perguntauão,
Pela Arabica lingoa, donde vinhão,
Quem erão, de que terra, que buſcauão,
Ou que partes do mar corrido tinhão?
Os fortes Luſitanos lhe tornauão,
As diſcretas repostas que conuinhão.
Os Portugueſes ſomos do Occidente,
Himos buſcando as terras do Oriente.

Do mar temos corrido, & nauegado
Toda a parte do Antartico, & Caliſto,
Toda a coſta Affricana rodeado,
Diuerſos Ceos, & Terras temos viſto:
Dum Rei potente ſomos, tam amado,
Tam querido de todos, & bem quisto:
Que nam no largo Mar, com leda fronte:
Mas no lago entraremos de Acheronte.

E por mandado ſeu, buſcando andamos
A terra Oriental, que o Indo rega,
Por elle o Mar remoto nauegamos,
Que ſo dos feos Focas ſe nauega:
Mas ja razão parece que ſaibamos,
Se entre vos a verdade não ſe nega.
Quem ſois, que terra he eſta que abitais?
Ou ſe tendes da India algũs ſinais?

Somos, hum dos das Ilhas lhe tornou,
Eſtrangeiros na terra, Lei, & nação
Que os proprios, ſam aquelles que criou
A Natura ſem Lei, & ſem Razão:
Nos temos a Lei certa que inſinou,
O claro deſcendente de Abrahão:
Que agora tem do Mundo o ſenhorio,
A mãy Hebrea teue, & o pai Gentio.

Esta Ilha pequena que habitamos,
He em toda eſta terra certa eſcala,
De todos os que as Ondas nauegamos,
De Quiloa, de Mombaça, & de Sofala:
E por ſer neceſſaria, procuramos,
Como proprios da terra, de habitala.
E porque tudo em fim vos notifique,
Chamaſe a pequena Ilha Moçambique.

E ja que de tam longe nauegais,
Buſcando o Indo Idaſpe, & terra ardente,
Piloto aqui tereis, por quem ſejais
Guiados pelas ondas ſabiamente.
Tambem ſera bemfeito que tenhais,
Da terra algum refreſco, & que o Regente
Que esta terra gouerna, que vos veja,
E do mais neceſſario vos proueja.

Iſto dizendo, o Mouro ſe tornou
A ſeus bateis com toda a companhia,
Do Capitão & gente ſe apartou,
Com mostras de deuida corteſia:
Niſto Febo nas agoas encerrou,
Co carro de Christal, o claro dia:
Dando cargo aa Irmaã, que alumiaſſe,
O largo Mundo, em quanto repouſaſſe.

A noyte ſe paſſou na laſſa frota,
Com eſtranha alegria, & não cuydada,
Por acharem da terra tão remota,
Noua de tanto tempo deſejada:
Qualquer então conſigo cuyda, & nota
Na gente, & na maneira deſuſada.
E como os que na errada Seita crérão,
Tanto por todo o mundo ſe eſtendérão.

Da Lũa os claros rayos rutilauão,
Polas argenteas ondas Neptuninas,
As Estrellas os Ceos acompanhauão.
Qual campo reueſtido de boninas,
Os furioſos ventos repouſauão,
Polas couas eſcuras peregrinas.
Porem da armada a gente vigiaua,
Como por longo tempo coſtumaua.

Mas aſſy como a Aurora marchetada,
Os fermoſos cabellos eſpalhou,
No Ceo ſereno, abrindo a roxa entrada,
Ao claro Hiperionio que acordou,
Começa a embandeirarſe toda a armada,
E de todos alegres ſe adornou:
Por receber com festas, & alegria,
O Regedor das Ilhas que partia.

Partia alegremente nauegando,
A ver as naos ligeiras Luſitanas,
Com refreſco da terra, em ſi cuidando,
Que ſam aquellas gentes inhumanas:
Que os apouſentos Caſpios habitando,
A conquiſtar as terras Aſianas
Vierão: & por ordem do deſtino,
O Imperio tomarão a Coſtantino.

Recebe o Capitão alegremente,
O Mouro, & toda ſua companhia,
Dalhe de ricas peças hum preſente,
Que ſo pera eſte effeito ja trazia:
Dalhe conſerua doçe, & dalhe o ardente
Não vſado licor que dâ alegria.
Tudo o Mouro contente bem recebe,
E muito mais contente come, & bebe.

Eſtà a gente maritima de Luſo,
Subida pela exarcia, de admirada,
Notando o estrangeiro modo, & vſo,
E a lingoagem tam barbara & enleada.
Tambem o Mouro astuto eſtà confuſo,
Olhando a cor, o trajo, & a forte armada.
E perguntando tudo lhe dezia,
Se porventura vinhão de Turquia.

E mais lhe diz tambem, que ver deſeja
Os liuros de ſua ley, preceito, ou fé,
Pera ver ſe conforme à ſua ſeja,
Ou ſe ſam dos de Christo, como crè:
E porque tudo note, & tudo veja,
Ao Capitão pedia, que lhe dé,
Mostra das fortes armas de que vſauão,
Quando cos inimigos pelejauão.

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