Vale lembrar, ainda, que um tratamento historiográfico da passagem do mundo antigo ao mundo medieval que se ampare em uma perspectiva mais complexa, menos linear e simplificadora, deve considerar a não homogeneidade do mundo romano. De um lado, é preciso considerar que, se nos últimos séculos do Império Romano o centro do sistema estava em crise, isso não se aplica necessariamente a regiões mais periféricas e menos ligadas ao centro administrativo imperial.
Reconhecer isto é admitir que o impacto dos abalos políticos no centro do Império teria afetado de modo muito diferenciado cada uma de suas partes, de suas diversificadas regiões.
De outro lado, outro aspecto de complexidade a considerar é que a sociedade romana não pode tampouco ser vista como um conjunto homogêneo. Foram certamente sentidos de modos diferenciados no tecido social romano eventos como os cercos a Roma e o saque visigodo, ou os deslocamentos de povos germânicos para o interior de zonas mais centrais do Império. Esse aspecto também tem sido abordado por historiadores.
Buscando demonstrar como os chamados invasores “bárbaros” foram recebidos com expectativas diferenciadas por diferentes setores sociais, o historiador Geoffrey Ernest Maurice Sainte-Croix trabalha com esta perspectiva em sua obra A luta de classes no mundo da Grécia Antiga . Seu objetivo é demonstrar, através de exemplos vários, que alguns setores das classes “inferiores” do Império receberam os invasores com expectativas bastante positivas. Neste sentido, evoca os dados de que um total de 40.000 escravos teriam aderido em massa aos godos no inverno em que estes sitiaram Roma, preparando o saque que seria desfechado por Alarico em 410 (SAINTE-CROIX, 2007) [18] A outra obra mais conhecida de Sainte-Croix, também buscando aplicar a perspectiva do materialismo histórico aos estudos da Antiguidade, foi The Origins of the Peloponnesian War , 1972.
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Esta adesão das classes inferiores aos invasores não romanos pode ser explicada pelo fato de que as chamadas “invasões bárbaras” se desdobraram na tendência de uma diminuição da intensa exploração que os grandes latifundiários vinham impondo às classes dominadas da sociedade romana, além do fato de que a penetração germânica trouxe uma maior tolerância religiosa ao mundo romano. Aspectos como estes permitem compreender que os chamados invasores bárbaros possam ter sido recebidos de modo positivo por boa parte da sociedade do antigo Império Romano. Deste modo, para Sainte Croix, em virtude da intensa e desmedida exploração das classes dominadas que foram implementadas pelas elites romanas, estas últimas é que poderiam ser consideradas as verdadeiras saqueadoras e destruidoras da civilização clássica. Esta análise, vale destacar, apoia-se na perspectiva de instrumentalizar o conceito de “luta de classes” para as sociedades antigas, e de acordo com elas a adesão das classes inferiores aos povos germânicos constituiria mais um lance no jogo de tensões sociais.
As análises mais complexas da queda, decadência ou transformação do Império Romano – conforme o ponto de vista – comportam, portanto, diversificadas possibilidades.
A partir do contraste entre os posicionamentos historiográficos citados neste ensaio, buscou-se colocar em discussão a complexidade que se relaciona aos vários aspectos que costumam ser apontados como traços importantes para este período que permeia a transição do mundo antigo para o mundo medieval. De um lado, devemos considerar que a maneira pela qual olhamos para um período histórico – como um começo ou um fim – já contribui de antemão para trazer uma determinada caracterização ao período imaginado. Isto de fato tornou possível considerar esta zona que se interpõe entre o fim do Império Romano e o Período Medieval como um fim ou como um começo. E, dependendo de uma posição ou outra, permite falar-se em uma “antiguidade tardia”, em “declínio do mundo romano”, em uma “alta Idade Média”, ou em uma “primeira Idade Média”.
Em segundo lugar, como se viu, há sempre a questão da escolha dos limites que definiriam historiograficamente um período ou outro.
Entre os acontecimentos processuais e pontuais escolhidos, os diversos recortes para a análise de um problema específico tornam-se possíveis.
Do acontecimento-processo que se organiza em torno do esgotamento do modelo escravista, desde o século II até as crises sociais que impõem um novo arranjo político no século III, ou até os marcos mais emblemáticos das invasões germânicas, mas também considerando este outro acontecimento- processo que seria a gradual penetração e fusão dos povos germânicos com as populações romanas, as possibilidades de recortar um início para o período limítrofe se sucedem. Da mesma forma, entre os séculos VI e VIII, este marcado pela impactante expansão islâmica, ou até mesmo o século XI para questões mais específicas como a da educação e da religiosidade, aqui se apresentam as variadas possibilidades de fins para um período que ora é chamado de Antiguidade Tardia, ora de Alta Idade Média, ora de Primeira Idade Média.
Por fim, pode-se investir também na complexidade granulada que, à parte os sintomas mais evidentes que se expressam sob a forma de eventos pontuais, dificulta periodizações mais definidas.
Eis aqui um mundo de possibilidades, extraordinariamente enriquecido pela profusão de campos históricos que beneficiou a historiografia contemporânea de modo a que os historiadores pudessem examinar não apenas a política como a cultura, a economia, as mentalidades, a demografia, a cultura material, o imaginário – fora uma enorme variedade de novos domínios temáticos abertos aos historiadores e de novos aportes teóricos que têm se colocado à sua disposição.
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