A auto-organização permite que a ordem possa emergir do caos, ao qual se voltará posteriormente. Conforme esta perspectiva, boa parte dos sistemas tende a se constituir de forma complexa para, posteriormente, se desintegrarem, de modo que a aplicação deste campo nocional à compreensão dos últimos períodos da história da Antiguidade Romana permitiria evocar aqui a noção de “desagregação”, mais do que as de “declínio”, “queda” ou “decadência”. A desagregação do Império Romano do Ocidente – uma vez que no Oriente Bizantino a experiência imperial seguiria mais adiante com novos elementos e com novos padrões de interação e relacionamento entre estes elementos – corresponderia à desestruturação de um certo padrão (complexo) de comportamento que pode ser identificado como característico do sistema de civilização típico do Império Romano. Esse padrão de comportamento específico e particular para o qual converge cada um dos mais diversos sistemas, e que é certamente singular para cada um destes mesmos sistemas, corresponde àquilo que alguns teóricos da complexidade chamam de atractor (STACEY, 1996: 54), uma espécie de “ordem” que se apresenta como dimensão de convergência do sistema e lhe assegura o funcionamento de uma determinada maneira, e, se for o caso, um crescimento equilibrado.
No caso do sistema sócio-político-econômico-cultural que aqui estaremos chamando simplificadamente de Império Romano, diversos elementos teriam concorrido para a manutenção da ordem e o funcionamento do sistema, integrando os diversos subsistemas e elementos em uma ordem maior, em equilíbrio dinâmico que atinge a sua expressão máxima no período da pax romana , simbolicamente o momento em que o poder do Império é inconteste, ou que assim se coloca para aqueles que o vivenciam dentro e fora dos limites do mesmo.
O exército, naturalmente, desempenhava um papel fundamental na manutenção da ordem, no fortalecimento dos mecanismos de identidade, na salvaguarda dos limites político-geográficos do Império, na construção de unidade política com a qual todos os cidadãos romanos podiam se identificar e nela se verem incluídos. Outros elementos mais diversos, da divisão de trabalho ao sistema de educação, compunham o sistema, de maneira integrada. A história da última fase do Império Romano, de acordo com uma perspectiva amparada na complexidade, é a história desta “desagregação”, não necessariamente sob o signo de “decadência” ou “declínio” – embora estas noções não sejam necessariamente incompatíveis com possíveis interpretações que trabalhem com a noção de “sistema adaptativo complexo” –, mas em todo o caso a história de uma rearrumação, de uma desestruturação da ordem que envolve diversos fatores.
É bastante interessante notar que um dos sintomas da desagregação, em um sistema complexo deste tipo, está precisamente na necessidade de se estabelecer vários controles sobre os diversos elementos e subsistemas que, na situação de equilíbrio natural, tenderiam a se articular e a interagir sem a necessidade de excessivas medidas de força, para além dos limites habituais assumidos pelas medidas de força nos momentos de equilíbrio.
Em uma palavra, em um sistema como o do Império Romano, um sintoma relevante do período de desagregação está precisamente na afirmação da necessidade de várias medidas extraordinárias de força, de modo a impor uma coesão que não estava ocorrendo mais entre diversos elementos que deveriam estar articulados para assegurar a unidade do Império. Historicamente, o século III representa um momento emblemático em que a desorganização começa a se fazer notar nos âmbitos econômico, político e militar, evocando a necessidade de medidas de força para tentar assegurar uma coesão que começava a ser ameaçada por distúrbios diversos, em um nível de ocorrência para além do que há muito já fazia parte do previsível no sistema político-social vigente. Afora os conflitos sociais diversos, bem como os distúrbios ocasionados pela crise do escravismo, o crescente confronto entre o poder do imperador e o senado constitui parte dos sinais e desdobramentos da desorganização do sistema. A partilha do poder imperial, prenunciando a divisão do Império em duas unidades políticas onde o título imperial passará a ser hereditário, constituirá outro desdobramento, acompanhado pelo crescente poder absoluto dos imperadores – signo maior das medidas de forças autoritárias e controladoras que precisam ser agora impostas em favor da coesão do sistema.
A quebra da unidade do exército através de um decreto imperial no século IV, criando divisões por províncias e territórios de atuação, segue-se como desdobramento da tentativa de resguardar o poder do imperador diante de um poder muito forte concentrado em um exército unificado, mas ao mesmo tempo a medida em médio prazo incorpora-se aos fenômenos de desagregação e de formação de estruturas autônomas.
Da mesma forma, a criação e imposição de castas profissionais no fim do século IV nada mais indica do que a necessidade de fazer frente a tendências de desorganização no âmbito econômico.
A antiga ordem imperial, enfim, apesar de todas as medidas de força que tentam impor a coesão, vai cedendo à inevitável desestruturação, a uma desagregação dos elementos que, antes coesos, conformavam a ordem do sistema. Contra tudo isto, o cristianismo, organizado em Igreja e gerando os seus próprios padrões de espacialização política, começa a constituir um sistema paralelo que agrega em dioceses o espaço sociorreligioso propondo uma nova organização administrativa, ora superposta ora desencaixada em relação à administração imperial.
Decisivamente, a ideia de universalidade que antes residia no Império vai se deslocando para a Cristandade consolidada institucionalmente na Igreja, e este confronto entre dois projetos universais – na vida política ou imaginária – breve se estenderá pelos séculos posteriores como uma longa reminiscência do jogo de encaixes e desencaixes entre os dois sistemas.
Mas o novo mundo medieval, efetivamente, tenderá a se organizar em torno da Igreja Cristã, o que já representa um novo sistema em construção.
A avaliação da passagem da Antiguidade à Idade Média de acordo com a perspectiva da desagregação de um sistema adaptativo complexo, enfim, impõe uma nova forma de visualidade para este período de transição que precede o mundo medieval – uma espécie de granulação, onde é difícil dizer onde termina um mundo e se inicia o outro, seria uma imagem adequada para se descrever este território pleno de ambiguidades, de desconstruções e reconstruções, de desagregação e reorganização de antigos elementos a par de novos elementos que, imperceptivelmente, parecem se ajustar de novas maneiras para a formação de um novo sistema de civilização. Estamos aqui em um território difícil de ser racionalizado, onde os fatos políticos, por mais emblemáticos e impactantes que tenham sido para seus contemporâneos e para os historiadores que posteriormente os examinaram, devem ser vistos sobretudo como sintomas de transformações que se iam operando nesta complexa passagem de um mundo a outro. Sobre esta vasta rede de transformações uma nova ordem emergia do caos.
Acerca da perspectiva acima elaborada sobre uma leitura da questão militar romana de acordo com o padrão teórico trazido pela teoria do caos, pode-se acrescentar que inúmeros outros aspectos devem ser considerados, e que a simplificação proposta não pode ser vista senão como um exercício de perspectiva. Questão fundamental para a compreensão do exército romano, certamente, reside no jogo entre identidade e alteridade presente em sua formação, certamente desvelador de todo um complexo sistema de tensões, negociações, alianças, estranhamentos e identificações culturais, para apenas citar alguns aspectos. Importante registrar ainda que a historiografia brasileira sobre a história antiga já possui obras importantes e relevantes sobre a questão, entre as quais podemos citar autores como Mendes (2002), Silva (s.d.) e Frighetto (2004: 147-163) [17] Destacamos ainda a obra Mendes e Silva (2006).
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