O tempo era pouco, ao contrário das festas. Arrumámo-nos às pressas para voltar à casa da mãe de Sridevi, para a segunda festa do primeiro dia. Os que ficaram no hotel continuaram a usufruir do luxo de se deslocar em um “autocarro”. Eu, Maria Clara e Jack fizemos o percurso a pé. Pelo caminho, vimos duas mesquitas e uma igreja que ainda não sei explicar se era católica ou protestante. Certamente era cristã, a julgar pela cruz no alto. Cruz, aliás, na cor roxa. Assim como toda a igreja.
Por onde passávamos, todos olhavam para nós. E foi quando Preeti, a prima da minha amiga que me hospedava, avisou-me para andar com os olhos postos no chão. Segundo ela, se eu olhasse para a frente significaria que eu estava disponível e correria o risco de ser desejada por algum daqueles homens. E caso me desejassem, poderiam tentar violar-me se tivessem a oportunidade. E a culpa seria minha, por não ter desviado os olhos. Foi quando comecei a ter medo.
Chegámos à festa. Ganesh continuava na função de receber os convidados. Dessa vez ele anunciava que participaríamos da “Sangeet Ceremony”, a festa da música. Eu esperava por músicas mais suaves. Nos primeiros dez minutos, percebi que a música popular atual da Índia não deixa nada a dever para as mais tocadas nas rádios brasileiras e portuguesas. Eu esperava também ver as primas e tias de Sridevi dançarem. Não vi. A festa estava organizada para nós. Fomos convidados ao palco diversas vezes. Tentaram nos ensinar a dançar como eles. Não conseguimos aprender. Eu sugeri que dançássemos um samba, mas devido à supremacia espanhola, dançamos “Macarena”, que, aliás, era conhecida pelos indianos. Ao final, todos foram convidados a subir ao palco para dançarem juntos. Quase todas as mulheres permaneceram sentadas. Por lá, até na dança os homens fazem questão de mostrar superioridade.
Segundo dia: o banho da noiva
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No segundo dia de festa, sétimo de viagem, acordei cedo novamente, mas não por vontade própria. Parece um hábito local. Acordaram-me antes das sete horas da manhã. Serviram-me para o pequeno-almoço uma espécie de pão, por vezes semelhante a bolo, feito com farinha de lentilha. Para acompanhar, um creme também de lentilha com vinte e duas especiarias, entre elas, pimenta de diversos tipos. Meu estômago já mostrava sinais de desgaste, mas eu não possuía comida escondida na mala e não havia passado por nenhum lugar em que pudesse comprar algo mais ocidentalizado.
Fomos – a pé – para a casa da mãe da noiva. Pelo caminho, tentei desafiar a regra de olhar para o chão. Recebi dois sorrisos que me fizeram gelar por dentro. Olhei para o chão novamente. Percebi que um homem olhava muito para a minha filha. Com medo, apressei o passo.
Enquanto andávamos, sentimos que as pessoas nos olhavam mais do que no dia anterior. Alguns olhavam para o jornal que tinham em mãos, depois para nós e em seguida para o jornal novamente. Ao chegarmos, antes de entrarmos na casa, um dos tios da noiva estava parado em frente ao portão e segurava um jornal para mostrar que estávamos na primeira página: “Estrangeiros participam de ritual de casamento em que tradicionalmente apenas a família deveria participar”, ele traduziu. Não compreendi se era um elogio ou não. Mas reparei que saí bem na foto.
Ao chegarmos ao local da festa, Ganesh aguardava-nos e informava que ali ocorreria o “Bridal Shower”. No Brasil, há um evento que precede os casamentos e recebe o nome de chá de panela. Nos Estados Unidos e em outros países de língua inglesa esse evento não é o chá, mas o shower, ou seja, duche, mas também pode ser interpretado como banho. Assim como não se faz chá entre as brasileiras, também não há banho entre as norte-americanas. É apenas o nome da despedida de solteira. Na Índia, contudo, ocorre realmente um banho.
Ao chegarmos ao quintal, o mesmo da véspera, havia uma espécie de banheira a imitar uma flor, com um banco no meio, que substituía o miolo. Em volta estavam espalhadas muitas pétalas de diversas cores e nove bacias douradas. Cada uma cheia até o topo com água e, por cima, mais pétalas. Cinco com pétalas na cor rosa e quatro na cor amarela. Não demorou muito e a noiva ocupou o banco-miolo. Ela usava um sári amarelo quase da mesma cor do banco e, como pude constatar depois, da cor da água misturada com especiarias.
As tias e primas começaram a preparar o banho. Em cada bacia foi adicionada uma especiaria diferente e, logo depois, um vidro de óleo essencial. A mãe, a irmã e a cunhada de Sridevi pegaram as bacias – cada uma ficou encarregada de três – e despejaram todo o conteúdo em cima da noiva, enquanto as outras mulheres repetiam palavras que se assemelhavam a orações decoradas. Nós, os forasteiros – agora também julgados pelos locais – apenas assistimos, enquanto os macacos gritavam entusiasmados em cima do muro. Talvez pela forte mistura de odores.
Após o banho, uma das empregadas apareceu com outra bacia dourada, cheia, também até o topo, de pó de curcuma, e adicionou um pouco de água. Uma a uma, as mulheres da família colocaram a mão no conteúdo dessa bacia. Cada vez que mergulhavam os dedos, a mistura transformava-se em uma pasta dourada. Uma curcuma pura, sem os conservantes adicionados para aguentarem a viagem até o Ocidente. A curcuma foi plantada e colhida no quintal e o pó foi extraído de maneira artesanal, pela mãe da noiva. Essa mistura, que agora já era uma pasta, era esfregada no rosto e nos braços da minha amiga.
Foi então que Sridevi mais uma vez quis alterar as regras da tradição. Levantou do banco-miolo e declarou que queria convidar seus amigos estrangeiros, inclusive os homens – e esse foi o choque maior – para esfregarem as especiarias em sua pele. Era tudo muito erótico. Por esse motivo, talvez, durante séculos as pessoas habilitadas a esfregar as especiarias eram apenas as mulheres mais próximas – mães, irmãs, cunhadas, primas e tias. Nem as sobrinhas, por serem normalmente crianças, tinham permissão para aquele ato carregado de sensualidade. Contudo, ela convidou-nos.
Fomos, um a um, até à flor-banheira. Antes, tivemos que tirar os sapatos. Ao lado dela, mergulhamos a mão direita na pasta de curcuma e esfregamos, meio desajeitados, alguns em seu braço e outros em seu rosto. Duas tias mais velhas retiraram-se do ambiente. Pareciam ofendidas. Enquanto eu esfregava a curcuma por baixo do queixo da minha amiga, senti como se estivesse a prepará-la para ser comida. Já estava imersa em uma água com diversas especiarias e agora recebia o toque final. No dia seguinte ela estaria pronta para o noivo. Uma iguaria indiana.
Chegou a hora do almoço e o cheiro de Sridevi despertou a minha fome. Mesmo com o estômago cada vez mais danificado, nunca comi com tanta vontade desde o primeiro dia. Após o almoço, fomos para o centro da cidade negociar sáris para o dia seguinte. Estávamos famosos. Todos queriam tirar fotos nossas. Duas mulheres pediram para que autografássemos o jornal. Contudo, tivemos que voltar para casa às pressas, pois nossa fama não era positiva para todos. Alguns acusavam-nos de quebrar as tradições. Sorrimos. Não compreendemos telugu. Mas Preeti empurrou-nos para o “autocarro”, muito aflita, e o condutor guiou a toda velocidade para o hotel e depois para a rua em que eu, Maria Clara e Jack estávamos hospedados. Ele na casa dos rapazes e nós na casa das raparigas.
Mais tarde, descansávamos ao lado de uma imagem de Lord Krishna, com a televisão ligada, quando vi a cena que havia ocorrido mais cedo. Fomos filmados a correr das ruas para o “autocarro”, às pressas, e já éramos notícia mais uma vez. Eu estava na sala apenas com a minha filha. Perguntei a Krishna o que o repórter havia falado, mas ele apenas sorriu.
Ao fim da tarde, fomos novamente a pé até o local da festa, o mesmo das anteriores. Eu olhava para baixo, enquanto ouvia a mesquita a chamar para a oração das seis. Todos olhavam para nós, exceto os quarenta e dois porcos que vimos pelo caminho, nos oitocentos metros que separavam uma casa da outra.
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