Os mais próximos vizinhos da localidade onde os cadáveres tinham aparecido apenas depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao mesmo tempo, e outro pouco depois. Um apenas adiantava coisa que não podia alumiar a justiça, e vinha a ser que o mato, nas vizinhanças do local, fora chapotado. Nesta escuridade a justiça não podia dar passo algum.
Tadeu de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida de Simão Botelho. Fora seu ó alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das saídas freqüentes de Teresa na noite do baile. Tanto ao velho como ao morgado convinha apagar algum indício que pudesse envolvê-los no mistério daquelas duas mortes. Os criados não mereciam as penas dum desforço que implicasse o desdouro de seus amos. Provas contra Simão Botelho não podiam aduzi-las. Aquela hora o supunham eles a caminho de Coimbra, ou refugiado em casa de seu pai. Restava-lhes ainda a esperança de que ele tivesse sido ferido, e fosse acabar longe do local em que o tinham assaltado.
Enquanto a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento do Porto, e escolheu Monchique, onde era prioresa uma sua próxima parenta. Escreveu à prelada para lhe preparar aposentos, e ao procurador para negociar as licenças eclesiásticas para a entrada. Todavia, receando o velho algum incidente no espaço de tempo que medeava até se conseguirem as licenças, resolveu não ter consigo Teresa, e solicitou a retenção temporária dela num convento de Viseu.
Acabara Teresa de ler e esconder no seio a resposta de Simão Botelho que a mendiga lhe passara ao escurecer, pendente de uma linha, quando o pai entrou no seu quarto, e a mandou vestir-se. A menina obedeceu, tomando uma capa e um lenço,
— Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus apelidos - disse com severidade o velho.
— Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sair à noite... - disse Teresa.
— E a senhora sabe para onde vai?
— Não sei... meu pai.
— Então vista-se, e não me dê leis.
— Mas, meu pai. atenda-me um momento.
— Diga.
— Se a sua idéia é obrigar-me a casar com meu primo...
— E daí?
— De certo não caso; morro, e morro contente, mas não caso.
— Nem ele a quer. A senhora é indigna de Baltasar Coutinho. Um homem do meu sangue não aceita para esposa uma mulher que fala de noite aos amantes nos quintais. Vista-se depressa, que vai para um convento.
— Prontamente, meu pai. Esse destino lho pedi eu muitas vezes.
— Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas primas esperam-na para a acompanharem.
Quando se viu sozinha, Teresa debulhou-se em lágrimas, e quis escrever a Simão. Aquela hora quem lhe levaria a carta? Apelou para o retábulo da Virgem, que ela fizera confidente do seu amor. Pediu-lhe de joelhos que a protegesse, e desse forças a Simão para resistir ao golpe, e guardar-lhe constância através dos trabalhos que sucedessem, Depois vestiu-se, comprimindo contra o seio um embrulho em que levava o tinteiro, o papel e o macete de cartas de Simão. Saiu do seu quarto, relanceando os olhos lacrimosos para o painel da Virgem, e, encontrando o pai, pediu-lhe licença para levar consigo aquela devota imagem.
— Lá irá ter - respondeu ele. - Se tivesse tanta vergonha como devoção, seria mais feliz do que há de ser.
Uma das primas, irmãs de Baltasar, chamou-a de parte. e segredou-lhe:
— Ó menina, estava ainda na tua mão dares remédio à desordem desta casa...
— Qual remédio?! - perguntou Teresa com artificial seriedade.
— Diz a teu pai que não duvidas casar com o mano Baltasar...
— Primo Baltasar não me quer - replicou ela, sorrindo.
— Quem te disse isso, Teresinha?
— Disse-mo meu pai.
— Deixa falar teu pai, está desatinado com o amor que te tem. Queres tu que eu lhe fale.
— Para quê?
— Para se remediar deste modo a desgraça de todos nós.
— Estás a brincar, prima! - redargüiu Teresa. - Eu hei de ser tua cunhada quando não tiver coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro homem. Queria viver para ele; mas, se quiserem que eu morra por ele, abençoarei' todos os meus algozes. Podes dizer isto ao primo Baltasar e dize-lho antes que te esqueça.
— Então? Vamos! - disse o velho.
— Estou pronta, meu pai.
Abriu-se a portaria do mosteiro. Teresa entrou sem uma lágrima. Beijou a mão de seu pai, que ele não ousou recusar-lhe na presença das freiras. Abraçou suas primas, com semblante de regozijo; e, ao fechar-se a porta, exclamou, com grande espanto das monjas:
— Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.
As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra "coração" uma heresia, uma blasfêmia proferida na casa do Senhor.
— Que diz a menina?! - perguntou a prioresa, fitando-a por cima dos óculos, e apanhando no lenço de Alcobaça a destilação do esturrinho.
— Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.
— Não diga - minha senhora - atalhou a escrivã.
— Como hei de dizer?
— Diga: "nossa madre prioresa".
— Pois sim, nossa madre prioresa, disse eu que me sentia aqui muito bem.
— Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir bem - tornou a nossa madre prioresa.
— Não?! - disse Teresa com sincera admiração.
— Quem para aqui vem, menina, há de mortificar o espírito, e deixar lá fora as paixões mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra de noviças, a quem compete encaminhá-la e dirigi-la.
Teresa não redargüiu: fez um gesto de respeito à mestra de noviças, e seguiu o caminho que a prelada lhe ia indicando.
A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua hóspeda enquanto ali estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pai escolheria aquele convento ou outro.
— Que importa que seja um ou outro? - disse Teresa.
— É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem rica das bentas ou bernardas.
— Professe! - exclamou Teresa. - Eu não quero ser freira aqui, nem noutra parte.
— A senhora há de ser o que seu pai quiser que seja.
— Freira?! A isso não pode ninguém obrigar-me! -recalcitrou Teresa.
— Isso assim é - retorquiu a prioresa - mas, como a menina tem de noviciado um ano, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá que não há vida mais descansada para o corpo, nem mais saudável para a alma.
— Mas a nossa madre - tornou Teresa, sorrindo, como se a ironia lhe fosse habitual - já disse que a estas casas ninguém vem para se sentir bem...
— É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações e obrigações de coro e de serviços para que nem sempre o espírito está bem disposto. Ora vês aí. Mas, em comparação do que lá vai pelo mundo, o convento é um paraíso. Aqui não há paixões, nem cuidados que tirem o sono, nem a vontade de comer, bendito seja o Senhor! Vive-mos umas com as outras como Deus com os anjos. O que uma quer querem todas. Más línguas é coisa que a menina não há de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Enfim, Deus fará o que for servido. Eu vou à cozinha buscar a ceia da menina, e já volto. Aqui a deixo com a senhora madre organista, que é uma pomba, e com a nossa mestra de noviças, que sabe dizer melhor que eu o que é a virtude nestas santas casas.
Apenas a prioresa voltou as costas, disse a organista à mestra de noviças:
— Que impostora!
— E que estúpida! - acudiu a outra. - A menina não se fie nesta trapalhona, e veja se seu pai lhe dá outra companhia enquanto cá estiver, que a prioresa é a maior intriguista do convento. Depois que fez sessenta anos, fala das paixões do mundo como quem as conhece por dentro e por fora. Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava na casa; depois de velha era a mais ridícula porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre este mostrengo a fazer missões e a curar indigestões.
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