Contudo, Belling não estava sozinho no palco público. Um outro hipnotizador igualmente conhecido, embora não tão carismático e mediático, tinha chamado a atenção da imprensa e das pessoas: chamava-se Josef Salvaterra. Salvaterra, tal como Belling, era um catalisador da atenção do público em torno do seu trabalho relacionado com a hipnose. Os dois já não podiam viver um sem o outro. Neste sentido também, a disputa entre ambos era permanentemente alimentada por jornais e revistas diversas, algumas de natureza satírica que exploravam a dualidade de carismas e as suas personalidades opostas. Marcus Belling e Josef Salvaterra eram muito diferentes um do outro, e mesmo os pacientes que recebiam nos seus consultórios, diferiam na forma de encarar a hipnose. Belling, por exemplo, costumava atrair muitos homens e mulheres que, fascinados pelo seu carisma, o procuravam com o objetivo de melhorar as suas vidas através das suas técnicas de hipnose. Os seus pacientes provinham de classes sociais diferentes e possuíam, por vezes, antagónicas convicções políticas e religiosas. Para além disso, existiam muitas famílias que recorriam aos seus conhecimentos de terapias aplicadas a crianças para resolver problemas de ansiedades e medos típicos da infância. Nesse aspeto, Marcus Belling despendia com grande prazer o seu tempo juntamente com os pequenos pacientes, talvez porque a sua carreira enquanto hipnotizador começara na pediatria dos hospitais onde se desencadeou o uso da hipnose para facilitar o diagnóstico de certas doenças.
Marcus Belling iniciara-se como hipnotizador no campo da hipnose clínica há quinze anos quando ainda pouco se falava em hipnose e muito menos da sua aplicação em ambiente hospitalar. Tudo começara, na realidade, quando Belling participou numa experiência conjunta com outros hipnotizadores pertencentes ao Conselho Nacional de Hipnose onde foi testado o uso da hipnose em crianças com epilepsia. Nessa altura, Marcus Belling teve a oportunidade de induzir o estado hipnótico nessas mesmas crianças criando assim um estado de alerta de consciência: posteriormente, procedeu-se à análise das mudanças no cérebro no padrão das ondas cerebrais. O cérebro foi então monitorizado por um aparelho de exame de imagens. Daqui, foi possível concluir que os sintomas apresentados por algumas destas crianças correspondiam de facto a sintomas típicos de outras doenças, o que permitiu concluir que estas não sofriam de epilepsia. Pela primeira vez, foi possível comprovar que a hipnose constituía um método fundamental que ajudava no diagnóstico clínico, mostrando ser essencial para que se pudesse aplicar o tratamento mais acertado. Como todos os especialistas, Belling sabia que o erro no diagnóstico prolongava o sofrimento dos pacientes.
Não seria exagerado afirmar que a larga experiência de Marcus Belling no campo da hipnose clínica foi decisiva no sedimento das suas convicções. Inconformado com o panorama atual da sua profissão, ele percebeu rapidamente que os jovens hipnotizadores não mostravam agora interesse em especializar-se nesta área, especialmente porque eram colocados em contacto direto com a dor humana. Todos fugiam do sofrimento alheio. Esta era uma dor tanto do corpo como da alma. Mas como Belling bem sabia, todo o conhecimento adquirido com a experiência constituía a base de formação de qualquer bom hipnotizador. Dentro dele, resistia a aceitação da filosofia “mercantilista” que era imposta ao exercício daquela profissão; por essa mesma razão, ele defendia que o uso mais frequente da hipnose clínica poderia aliviar a pressão que tinha recaído nos hipnotizadores para obter lucros rápidos e constantes com as suas sessões. Como ele bem sabia, parecia hoje mais importante gerar receitas avultadas com a hipnose do que usá-la nos meios hospitalares e desenvolver as suas técnicas com os doentes. Por isso, o famoso hipnotizador sentia que faltava uma investigação aprofundada acerca do uso futuro da hipnose nos hospitais, e que os jovens hipnotizadores estavam poucos interessados nesta vertente.
Gradualmente, da fusão de todas estas experiências profissionais, o popular Belling acabaria igualmente por ficar conhecido pelo facto de ter desenvolvido terapias familiares que ajudariam as famílias a superar conflitos internos. Ele era assim, simultaneamente, hipnotizador e terapeuta com a capacidade de conjugar bem as suas diferentes facetas.
Já Josef Salvaterra, no seu estilo mais antiquado, (e “antiquado” era uma palavra que muitas pessoas usavam quando tentavam descrever as suas técnicas) costumava receber no seu consultório homens e mulheres de meia-idade, normalmente mais conservadores e tradicionalistas que se mostravam avessos à forma de trabalho de Marcus Belling. Salvaterra sabia que alguns dos seus clientes apenas o procuravam porque já não conseguiam lidar com o excessivo mediatismo de Belling e, por essa razão, para fazerem valer a sua posição, procuravam um hipnotizador diferente. Nestes casos, o carisma de Marcus Belling tornara-se incomodativo. Desta forma, os respetivos pacientes (Salvaterra preferia chamá-los de “clientes”) dos dois hipnotizadores pareciam pertencer a claques distintas que por vezes se envolviam em conflitos. Mas tudo isto já fazia parte da rotina de Belling e de Salvaterra que praticavam a hipnose há mais de vinte anos.
Ao longo desses anos, o grande público mostrara igualmente interesse em conhecer as filiações políticas e ideológicas dos dois hipnotizadores; de forma pouco habitual, as pessoas consideravam que aqueles dois homens, embora não tivessem qualquer experiência política, dariam certamente bons políticos. O público inflamava-se com os seus discursos e surgiam adeptos, de um lado e do outro, que ora defendiam Belling, ora Salvaterra. Para uns, o primeiro daria um bom Ministro da Assistência Social, enquanto ao segundo já lhe tinha sido destinada, por votação popular, a pasta do Ministério do Trabalho. Os meios de comunicação tentavam neste ponto simplificar as suas divergências. Sucintamente, Belling era mais de direita e Salvaterra mostrava ter mais empatia com ideologias de esquerda. Era assim que as pessoas e também a imprensa os tinha “ideologicamente” dividido para uma mais fácil compreensão das suas antíteses pessoais e políticas. Marcus Belling tentava ignorar estas descrições, mas o mesmo não se passava com Josef Salvaterra que se preocupava muito com as suas descrições políticas. Apesar das diferenças, os dois hipnotizadores recusavam-se em participar na luta política, de certa forma porque consideravam que isso não seria benéfico para as suas carreiras. Apesar disso, lá no fundo, sem confessar, Salvaterra tinha neste campo há alguns anos, mais ambições do que Belling. Apenas se mantivera afastado da política para não destoar, no essencial, da postura do adversário. A verdade é que Josef Salvaterra tinha receio de trilhar um caminho demasiado diferente da do seu concorrente.
Marcus Belling e Josef Salvaterra limitavam, assim, as suas zonas de influência. Embora nem sempre de forma consciente, os dois hipnotizadores tentavam manter posturas idênticas perante o público e os meios de comunicação. Assim, apesar de possuírem personalidades muito distintas entre si, os dois tentavam não divergir no que era parecia ser fundamental: as suas convicções pessoais, políticas e ideológicas. Acharam por bem, não aprofundar as suas notórias divergências pessoais e profissionais, de modo que existia uma espécie de “acordo de cavalheiros”, que se traduzia em ações, e não em palavras. Talvez por causa disso, estava montado há muitos anos um esquema logístico de “espionagem” de ambas as partes que tinha como propósito conhecer todos os seus movimentos. No entanto, sem que Belling ou Salvaterra pudessem prever, todo o seu esquema de trabalho será colocado em causa com o aparecimento de Anne Pauline. Esta jovem mulher, também sem saber, irá alterar todas as circunstâncias pessoais e profissionais que estavam, há mais de vinte anos, sedimentadas em torno dos dois hipnotizadores.
Читать дальше